Quase metade dos obesos são operados fora do prazo recomendado

No Dia Nacional e Europeu de Luta Contra a Obesidade, o PÚBLICO conta-lhe o caso de Renato Lopes, para quem a única saída para o excesso de peso foi uma cirurgia que lhe reduziu o estômago e o intestino. Em Portugal há 3000 pessoas por ano que se submetem a este tipo de intervenções, entre o sector público e privado.

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Renato Lopes não cabia na coxia de um autocarro Pedro Elias
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O número de cirurgias para tratamento de obesidade terá passado de 1900 em 2011 para menos de 1500 em 2014 Miguel Manso

Renato Lopes nasceu pela segunda vez no dia 23 de Junho de 2014. As notas do cirurgião Rui Ribeiro apontam para que no momento deste “parto” tivesse 178,8 quilogramas e 1,7 metros de altura. As roupas acompanhavam as largas proporções: calças tamanho 70, camisas acima do 52. Menos de um ano depois de se ter submetido a um bypass gástrico, uma cirurgia que lhe reduziu o tamanho do estômago e do intestino, Renato, de 37 anos, perdeu metade de si e, assegura, ficou a ganhar. “Cortei o estômago, perdi uma pessoa e nasci outra vez. Tenho 95 quilos e calças 48”, diz, sempre a sorrir. Em Portugal, metade dos obesos com indicação para este tipo de cirurgias são operados no Serviço Nacional de Saúde fora do prazo recomendado. O total anual caiu para menos de 1500 intervenções. Renato temeu não aguentar a espera, voltou-se para o sector privado.

Desde que o Programa de Tratamento Cirúrgico da Obesidade terminou, em 2012, que o número de pessoas sujeitas a este tipo de operações caiu. O total anual destas cirurgias feitas no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS) chegou a aproximar-se das 1900 em 2011, mas em 2014 terá ficado abaixo das 1500, caso no segundo semestre o comportamento tenha sido igual ao do primeiro. Metade dos doentes foram operados fora do tempo máximo recomendado para estas situações, que é de nove meses. O PÚBLICO solicitou os dados finais à Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), mas não obteve resposta. No país inteiro são feitas perto de 3000, com muitos doentes a recorrerem ao sector privado, sobretudo quem tem convenções e subsistemas, mas os seguros de saúde não comparticipam.

Rui Ribeiro, que é também presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia da Obesidade, alerta que estes números não contam tudo: o acesso às primeiras consultas da especialidade no SNS também tem sido dificultado, pelo que muitos obesos ainda nem sequer constam da lista de inscritos para cirurgia, mas lembra que apesar de tudo estamos melhor do que países como a Alemanha, que não paga estas soluções. O cirurgião coordena a Unidade de Tratamento Cirúrgico da Obesidade do Centro Hospitalar Lisboa Central que, a par do Centro Hospitalar de São João, no Porto, é das que mais casos atendem. Mas já aconteceu chegar a altura de chamar um doente e “ele ter morrido seis meses antes, com um enfarte do miocárdio”.

É por isso que o presidente da Associação de Doentes Obesos e Ex-Obesos de Portugal, Carlos Oliveira, salienta que o que é feito não chega num país com “350 mil super-obesos”. Os últimos dados da Direcção-Geral da Saúde, publicados em Dezembro do ano passado, apontam para um milhão de obesos e 3,5 milhões de pré-obesos. O representante dos doentes mostra-se especialmente preocupado pela falta de aposta na prevenção, numa altura em que garante que a crise “aumenta a obesidade”. Além disso, lembra que a cirurgia e exames facilmente chegam aos 15 mil euros, “um valor ao alcance de poucos”.

Renato sempre teve excesso de peso, mas a passagem dos 120 quilos para os quase 180 aconteceu quando deixou de fumar e compensou isso com doces e refrigerantes, que agravaram a hipertensão, diabetes, colesterol e ácido úrico. “Não comia muito, comia mal. Deixei o rancho folclórico, o futebol, não conseguia andar. Percebi que a cirurgia era a única opção quando deixei de gostar de mim e comecei a achar que não ia andar cá muito tempo.” Chegou a um ponto em que não cabia numa cadeira de braços numa esplanada e em que quase teve de deixar a profissão de motorista, com a barriga cada vez mais difícil de encaixar ao volante do autocarro.

Pediu ajuda ao médico de família e foi encaminhado para o Hospital de Évora. O tempo de espera para a primeira consulta era de ano e meio. “Disse que não aguentava. Um dia fui a um ‘pronto a comer’ e pedi à senhora para me dar tudo o que fizesse mal para ver se morria. Ela deu-me o contacto do dr. Rui”, conta, ao mesmo tempo que mostra fotos antigas e calças onde agora cabem ele e a mulher. Reconhece que não sabia ter chegado a tal ponto, mas quer lembrar-se disso para continuar a ter força para a alimentação disciplinada que a cirurgia exige. O motorista admite que a parte financeira é um entrave, até porque agora vai precisar de cirurgias para remover a pele em excesso no peito, braços e pernas. “Tem sido com o apoio dos meus pais. Posso dizer que os meus pais me deram a vida duas vezes.”

Entre o hospital e a clínica privada, Rui Ribeiro fez cinco operações a doentes como Renato nesta semana e o PÚBLICO acompanhou duas delas. Foram ambas com anestesia geral e por laparoscopia, um método que permite fazer apenas alguns “furos” na barriga e acompanhar os movimentos por dois ecrãs em que o interior do corpo humano surge ampliado. Há várias técnicas, como a banda gástrica, mas actualmente “o bypass é a mais divulgada a nível mundial e com melhores resultados”. A cirurgia altera o sistema digestivo, fazendo do estômago uma bolsa mais pequena e encurtando o intestino para que os alimentos não passem pelo duodeno, onde são absorvidas mais calorias.

Renato já viu a sua operação, gravada pelo cirurgião. Como quase todas as pessoas com obesidade mórbida tinha um intestino excessivamente grande, o que faz com que haja menos saciedade e mais absorção dos alimentos. Um dos doentes desta semana tinha mais de dez metros de intestino e o normal é seis. Renato diz que tinha 12. Rui Ribeiro faz um bypass que tem ainda um bónus e a assinatura da sua equipa: além da redução do estômago e do intestino por um método conhecido como anastomose única, aplica ainda um mecanismo anti-refluxo – para evitar uma das principais queixas dos doentes.

Ao fim de um ano perdem 90% do peso em excesso, até porque a técnica que utiliza reduz drasticamente a absorção das gorduras e tem também efeitos hormonais, como restringir a hormona grelina, associada à fome. “A cirurgia controla também 85% a 90% dos diabéticos e 60% dos hipertensos”, reforça o especialista. O cirurgião diz que, depois da operação, “muda quase tudo”, pelo que é fundamental o trabalho dos dietistas e psicólogos para preparar a nova imagem. “Pode haver flacidez e um aspecto envelhecido”, alerta. Renato sabia disso, mas só consegue sorrir. “Voltei ao rancho, ando seis quilómetros a pé e consigo subir escadas a correr. Há quem nem me reconheça na rua. Visto as roupas que a minha mãe guardou à medida que engordei e rio-me a olhar para as calças que usava. A minha mulher diz que o dr. Rui é o 'dr. Milagre'”.

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