ONG acusa exército israelita de ignorar ética em ofensiva em Gaza

“Disparem, disparem, disparem”, diziam os comandantes: soldados israelitas contam à associação Breaking The Silence como as regras de combate usadas na guerra na Faixa de Gaza não protegeram civis.

Foto
A operação israelita em Gaza deixou um grau de destruição sem precedentes no território Thomas Coex/AFP

Duas mulheres foram mortas porque foram consideradas terroristas. Nenhuma estava armada, mas uma delas estava a falar ao telemóvel. Havia ordens para disparar em força e contra tudo após avisos dos comandantes – não poupem nas munições. Proteger as vidas dos militares israelitas era uma prioridade, proteger os civis palestinianos menos: algumas regras permitiam disparos mais perto de onde estavam civis do que de onde estavam forças de infantaria israelita. São algumas das conclusões de uma série de testemunhos de 60 militares, um quarto deles oficiais, recolhidos pela associação Breaking the Silence, sobre a guerra do ano passado em Gaza.

“As IDF [Forças de Defesa de Israel] pegaram no seu código de ética e atiraram-no pela janela, sem dizer aos soldados e aos cidadãos de Israel”, acusa Avner Gevaryahu, porta-voz da ONG, ao jornal Times of Israel

A operação durou entre 8 de Julho e 26 de Agosto, e vitimou mais de 2100 palestinianos, assim como 66 soldados israelitas, e  deixou a Faixa de Gaza num estado de destruição sem precedentes. Foi apresentada como um sucesso pelos comandantes nos briefings aos soldados: “Falaram de números: 2000 mortos e 11 mil feridos, meio milhão de refugiados, destruição que levará décadas a reverter, danos a muitos membros do Hamas, às suas casas, às suas famílias. Foram apresentadas como vitórias, que iriam manter Gaza calma nos cinco anos seguintes”, conta um sargento. “O que aconteceu foi um cessar-fogo de 72 horas.”

Um episódio foi relatado por vários intervenientes. “A nossa unidade foi fazer um raide a uma área de onde uma das nossas companhias foi atingida por uns mísseis anti-tanque”, conta um dos testemunhos (todos sob anonimato). “A dada altura um velho palestiniano aproximou-se da casa e toda a gente se lembrou de uma história de um velho palestiniano com explosivos (…). Então o tipo que estava de guarda viu o civil, e disparou, e não acertou bem. Ele ficou ali, a contorcer-se de dor. Toda a gente se lembrava da outra história, por isso nenhum dos paramédicos quis ir lá tratá-lo. (...). Acabámos por acabar com o seu sofrimento, e um D9 [bulldozer blindado] pôs um monte de terra por cima dele e acabou a história”.

O que aconteceu não foi assim relatado aos superiores. Mas “como isto aconteceu quando estávamos numa ofensiva não interessou a ninguém: “Temos feridos na frente, não nos chateiem, façam o que têm de fazer”, comentou o soldado.

Apesar de estar ser uma das histórias mais impressionantes, o relatório da associação, criada por antigos militares em 2006 dedicando-se a expor má conduta no exército de Israel, critica sobretudo as ordens superiores. A hipótese de trabalho era de que qualquer pessoa nos locais de intervenção era combatente, diz a ONG. 

“As regras para os soldados a avançar no terreno eram: disparem, disparem contra tudo, a primeira coisa a fazer quando entram é disparar”, contra outro soldado. “Ou há alguém com uma bandeira branca, ou então é uma ameaça e há autorização para disparar”, conta outro. “Não era uma situação em que houvesse pessoas que não estavam envolvidas. Todas as pessoas estavam envolvidas”, diz outro soldado.

“Uma das coisas comuns nos testemunhos é a presunção de que apesar do facto de a batalha estar a ser travada numa área urbana, e uma das mais densamente povoadas do mundo – não iria haver civis nas zonas onde entraram”, comenta Michael Sfard, conselheiro legal da Breaking the Silence e advogado de direitos humanos, ao diário britânico The Guardian.

Um militar conta como lhe foi pedido que revisse imagens de uma rua para se assegurar que um determinado edifício tinha mesmo sido destruído. “Abri as imagens e vi que tinham sido tiradas logo após o ataque, e havia muitas pessoas lá, muitas ambulâncias, muito fumo…”, relata. “E pela informação que tínhamos, essa zona estava supostamente livre de civis.”

“Disseram-nos que não era suposto haver civis ali”, conta outro soldado, referindo-se a outro caso: “‘Se vires alguém, dispara’. Isso para mim faz sentido. Se disparares contra alguém em Gaza não há grande problema, primeiro, porque é Gaza, segundo, porque é guerra. Isso foi-nos dito: ‘não tenham medo de disparar’, e deixaram claro de que não havia civis não envolvidos”.

Os militares tinham uma lista de locais a evitar durante os bombardeamentos – hospitais e escolas da ONU usadas como centros de refugiados (houve vários casos de escolas da ONU que funcionavam como centro de refugiados e mesmo assim foram atingidas).

Mas se um comandante quisesse atingir estes locais, isso era possível: “Se ouvimos uma ordem via rádio para atingir o edifício, temos de dizer que não”, explica Yehuda Shaul, antigo militar e um dos fundadores da ONG. “Mas temos um testemunho que conta como contornar isso: é dado um alvo 200 metros ao lado e depois pede-se fogo de correcção para a localização do edifício. A única localização que fica gravada é a do primeiro alvo”.

Em relação ao conflito do ano passado em Gaza, as autoridades israelitas abriram 13 investigações, duas por pilhagem, outras por suspeitas de pouco cuidado com mortes de civis, como num caso em que morreram quatro crianças na praia de Gaza (as crianças foram particularmente atingidas nesta ofensiva). Em inquéritos anteriores a acções suspeitas durante ofensivas em Gaza, a pena mais pesada foi para um soldado condenado a 15 meses de prisão (com direito a recurso) por ter roubado um cartão de crédito na operação de 2008-2009. O exército diz que está empenhado em investigar todas as alegações de conduta irregular ou ilegal dos seus militares.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários