O Governo promete fazer a reposição integral dos salários pagos aos trabalhadores do sector público em 2019. Mas o facto de passarem a receber, dentro de quatro anos, um salário bruto idêntico ao que recebiam em 2010, não significa que o poder de compra destes trabalhadores volte a ser o mesmo que antes da crise. Muito longe disso. Entre 2010 e 2019, os salários dos funcionários público sofrerão em termos reais uma perda de 12,9%.

Esta erosão do valor dos rendimentos é o resultado da evolução dos preços e afectará de igual forma os trabalhadores do sector privado que durante este período tiveram os seus salários congelados e uma parte dos pensionistas afectados pela contribuição extraordinária de solidariedade (que agora se aplica apenas às reformas mais altas e será retirada gradualmente).

Em 2011, o Governo de José Sócrates impôs um corte de 3,5% a 10% para os salários superiores a 1.500 euros (valor bruto). A medida manteve-se nos anos seguintes e chegou a ser agravada em 2014, passando a aplicar-se uma taxa de redução de 2,5% a 12% para os salários superiores a 675 euros. Acabou chumbada pelo Tribunal Constitucional e apenas vigorou por cinco meses, tendo depois o Governo optado por recuperar o corte de 2011.

Já este ano, o Governo optou por devolver 20% do corte e no Programa de Estabilidade (PE) para 2015-2019, aprovado ontem e enviado nesta sexta-feira para o Parlamento, promete manter o ritmo de reposição dos salários ao longo dos próximos quatro anos.

O legado da crise para a situação financeira dos funcionários públicos não fica no entanto por aqui. Além da perda de poder de compra por causa da inflação, os funcionários do Estado foram visados também pelos efeitos do aumento dos descontos para a ADSE (o subsistema de saúde da generalidade dos funcionários públicos), que passou de 1,5% para 3,5%, e do agravamento de 10% para 11% das contribuições para a Caixa Geral de Aposentações. Estas medidas são de carácter permanente e o actual Governo não deu sinais de que querer retirá-las.

E há ainda outras medidas mais difíceis de contabilizar mas que também induziram uma perda de rendimento de 2010 em diante, como a redução do pagamento do trabalho extraordinário ou o aumento do horário no Estado de 35 para 40 horas semanais.

É claro que, para os funcionários públicos, a boa notícia é que, acreditando naquilo que está planeado pelo Governo, o pior já passou. A perda de poder de compra que sentiam em Maio de 2014, quando o corte salarial atingiu o seu máximo (era de 2,5% a 12% para salários acima de 675 euros), juntava-se ao efeito da inflação que já se sentia desde 2010. A partir desse momento, os trabalhadores do Estado conseguem com a reposição progressiva do valor do salário pelo menos compensar o efeito da inflação que, por agora, se mantém a níveis muito baixos.

No Programa de Estabilidade agora apresentado (e que terá de ser executado pelo próximo Governo), o Executivo não coloca a hipótese de proceder a actualizações salariais que vão além da simples reversão dos cortes efectuados no passado. Isto acontece porque os salários dos trabalhadores do Estado é uma das componentes da despesa em que a equipa liderada por Maria Luís Albuquerque conta obter mais ganhos para a redução do défice.

Por isso, é essencial para o Governo esta evolução moderada das remunerações da função pública, que garantirá que, ao longo dos próximos anos, as despesas com pessoal aumentem a um ritmo inferior ao crescimento esperado da economia.

Entradas descongeladas e programas de rescisões permanentes
Entre 2015 e 2019, o Governo conta aumentar em 640 milhões de euros as despesas com os funcionários públicos, resultado da manutenção do volume do emprego e da reversão integral dos cortes salariais. É um ritmo de crescimento anual que vai de zero até 1,6% e que, por isso, fica bastante abaixo do crescimento nominal do PIB que é projectado pelo Governo para esse período, com valores acima de 3,5% ao ano.

Isso explica que o peso das despesas com pessoal no PIB possa continuar a reduzir-se ao longo dos próximos anos e passe, de acordo com os cálculos do Governo, de 11,1%, em 2015, para 9,9%, em 2019. No Programa de Estabilidade, que será enviado para Bruxelas até ao final de Abril, o Executivo de Pedro Passos Coelho atribui esta diminuição a "uma política de racionalização do emprego público".

Racionalização não significa, contudo, mais congelamentos e a ministra das Finanças dá sinal de que haverá condições para repor alguns instrumentos. A partir de 2016, o Governo promete aliviar as restrições à contratação de pessoal e põe em cima da mesa a possibilidade de substituir os funcionários públicos que saiam.

Ao contrário dos últimos anos, em que se registaram "reduções significativas" no número de funcionários públicos (-9,8% entre final de 2011 e final de 2014), o Governo "assume a possibilidade de uma entrada por cada saída", refere o documento.

O memorando da troika obrigava Portugal a reduzir em 2% ao ano o número de funcionários públicos, o que levou o Governo a congelar as admissões. A meta foi superada. Em finais de 2014 havia 655.620 trabalhadores nas administrações públicas (central, local e regional), ou seja, menos 71.365 face a 2011.

No Programa Nacional de Reformas, que será enviado à Comissão Europeia juntamente com o PE, há algumas pistas sobre a eventual entrada de pessoal. O Governo assume que pretende “manter uma política de recrutamento selectivo” para as funções mais qualificadas e, ao mesmo tempo, promover mecanismos de recompensa do desempenho “que incentivem os técnicos especializados”.

Esta abertura para substituir trabalhadores não significa que o Governo abandone os programas de rescisões amigáveis ou a dispensa de trabalhadores através do mecanismo da “requalificação”.

No programa que elenca as reformas que se compromete a fazer nos próximos anos, caso seja reeleito, o Executivo defende que as rescisões deverão funcionar de forma “estável e permanente”, limitadas apenas à disponibilidade orçamental anual.

Mais uma vez, acena-se com o descongelamento das promoções e progressões na carreira, uma medida que se esperava pudesse entrar em vigor já em 2015 e que acabou por ficar fora da Lei do Orçamento do Estado. Embora reconheça que se mantêm as restrições financeiras, a equipa liderada pelo primeiro-ministro considera “fundamental avaliar uma solução que permita uma reposição gradual e equitativa” desses mecanismos nos próximos quatro anos.

Contenção nas prestações sociais
Ainda do lado das despesas, o Governo está a contar com uma contenção do crescimento dos gastos com prestações sociais, antecipando os resultados da reforma da Segurança Social, que está ainda em aberto, e da melhoria do mercado de trabalho. No próximo ano, estes encargos subirão 1,9%, uma taxa de crescimento inferior à evolução do PIB, que a ministra das Finanças espera que seja de 3,5% no corrente ano. Entre 2015 e 2019 o crescimento não irá além de 9,2%, enquanto o PIB nominal crescerá 15,8%.

Esta contenção, explica o Governo, é fruto "da adopção de uma medida para a sustentabilidade da Segurança Social na área das pensões" e "da redução da despesa com subsídio de desemprego num contexto de redução da taxa de desemprego". Ou seja, nestas contas entra a reforma do sistema de pensões que o Executivo pretende levar por diante mas que ainda não está definida, assim como a melhoria das perspectivas do desemprego (a taxa deverá cair para 11,1% da população activa em 2019).

Os gastos com subsídios de desemprego são, de resto, a rubrica onde a redução das despesas sociais mais se fará sentir. Entre 2015 e 2016, o actual Executivo conta gastar mais 68,6 milhões de euros, mas daí em diante aponta para uma queda. Entre 2015 e 2019, a redução será da ordem dos 310 milhões de euros, o que levará a que o peso destes gastos do PIB passe de 1,1% para 0,8%.

Se olharmos para o peso da totalidade das despesas sociais no PIB, ocorrerá uma redução gradual, dos 19,4% actuais até chegar aos 18,3% em 2019.

Ao longo dos próximos quatro anos , o Governo antecipa que o saldo orçamental continue a melhorar, até atingir, em 2019, um excedente de 0,2% do PIB, um resultado conseguido à custa de uma redução total da despesa de 4,7 pontos percentuais do PIB e de uma diminuição da receita na ordem de 1,8 pontos percentuais do PIB. As áreas que mais contribuem para o corte na despesa são, além das despesas com pessoal e das prestações sociais, os juros e o consumo intermédio.