Estes arcos, estes arcanos

A poesia de Persianas, de Miguel-Manso, não silencia o canto daquilo que é obscuro, mas nunca deixa de ser uma procura de luz

Foto
A poesia de Miguel-Manso nunca deixa de ser uma procura de luz Miguel Manso

A citação inicial — “Muito dentro de casa e muito fora de casa” —, de Álvaro Lapa (presença que reincide no poema Lapa, Palolo, Bravo), produz, desde logo, uma incisão, deixa aberta uma sutura, que não vai produzir um sentido demasiado rígido. É da casa que se trata, mas, em Persianas, é tão determinante o que existe dentro como aquilo que o é fora daquele espaço. Se o universo doméstico é fundamental, não o é menos a sua envolvente — neste caso, silvestre. Miguel-Manso chamou, aliás, Campéstico, Paisagens e Interiores à primeira parte de Persianas.

Um dos aspectos mais distintivos deste livro é a sua dimensão, que se abeira das 200 páginas. Uma expansão, como é sabido, pouco habitual no universo da poesia portuguesa mais recente. O que conduz a que, além das três grandes zonas que organizam Persianas — Campéstico, Paisagens e InterioresPersianasDa Cegueira dos Pintores —, haja ciclos transversais à própria noção das partes de um livro. Poderíamos chamar a um deles o “ciclo do poema”, aquele em que as composições se conduzem em direcção ao seu próprio fazer — “também um texto se afasta/ou se avizinha do juízo e do desvairo começa// abaixo da cintura a sopear caminhos” (p. 91); “as palavras prestam-se a diferentes/ abismos de luz e de sentido” (p. 94). Mas também o passado é elemento norteador de um outro ciclo possível (tanto mais que o tempo é um dos veios centrais de Persianas, de que o poema A Falha do Tejo é um dos mais notáveis exemplos), com o Verão a funcionar como eixo organizativo — “às voltas em pequena argola de areia/ a criança flutuava entre o solário e os faros/ que trouxessem perfumes mais incertos” (p. 100). E se tudo apontaria para a banalidade de uma metáfora tão consumida como “cal”, essa palavra é usada, aqui, de uma forma que consegue obliterar o fosso entre concreto e abstracto, superando a vala do cliché. Referindo-se à factualidade de uma paisagem litoral, fá-lo pela via de uma generalização (“costa”), em vez do concreto de um rochedo, ou falésia, por hipótese — “cal da costa gravando mensagens/ na pedra dos muros” (p. 99). É, igualmente, possível conceber um ciclo da pintura, recorrente neste livro (e nas três partes dele), assim como o era já noutros títulos. Uma presença de tal forma imbricada que legitima uma fórmula como “a escrita — a pintura — é como apertar uma vagem/ de baunilha// custa e gasta-se” (p. 111).

Num dos diversos momentos em que a linguagem ostenta a marca de um contexto subentendido, o campestre — “clarões e noitadas sulfatados sobre o interior e exterior/ do ente// que eu é o eu diante deste facto?/ doente no interior e exterior de si” (p. 16) —, ela surge aclimatada por um âmbito vocabular que é o da filosofia. Porque não podemos deter-nos na singela consideração de que existem jogos de palavras e boicotes deliberados — “do ente”/

“doente”/”diante”. Tanto mais que a introdução do vocábulo “ente” formula uma articulação pertinente com a inscrição do “eu”, que cumpre uma função que muito extrapola o nível do faceto. As quatro quintilhas de “boa chuva cai neste fim de Março, as galinhas” produzem, no seu firme acerto formal, um justo tratamento dos tópicos imputáveis a uma tradição centenária. Este poema consegue exumar uma memória literária que é a da poesia pastoril. Naturalmente que aqui se alijou toda a carga arqueológica dos géneros. Sem proceder a uma releitura arrebatada e cega dos códigos, redu-los a um mínimo essencial. E se, por exemplo, a primeira estrofe firma existências como “galinhas”, “poleiros”, “fogo”, “água”, ou “rede”, a denúncia de um tema de William Carlos Williams faz suspender o que poderia ser a imersão acrítica num universo monotonamente arcaico. De tal maneira que o evoluir do poema desagua em versos que vêem já a declinação quase irónica, quase cínica, de um leito histórico sobre o qual ele resolveu acolher-se — “quando baixamos à fresta/ da porta mal calafetada que abre para o quintal é/ por aí rente ao soalho que este poema se escapa” (p. 63). Não deixará, talvez, de ser importante perceber que tanto o poema como o locus por ele eleito se encontram em modo friável. A má calafetação da casa, a possibilidade de fuga do próprio poema culminam num modo instável, que abala as estruturas aparentemente sólidas lançadas pelo fantasma do bucolismo. A ambiguidade, gerada pela sintaxe e pela ausência de pontuação (em contraste com o ânimo quase clássico do verso e da estrofe), rompe o que poderia haver de estável — “há ainda que contar alguns casacos pendurados/ na fila de cabides presa ao tabique mal estucado/ e o frio que lavra de Oeste rompendo o umbral// que vem varrer a entrada dos aposentos tocar a/ Leste a estante do último salão intrometer-se nos/ livros” (id.). De modo comparável, a oscilação entre o terceto e o dístico do poema com o incipit “a mão agrícola vai ao vaso” (p. 19) patenteia uma vigília dedicada à forma do poema que se distingue de alguma indiferença em relação a esse aspecto em registos anteriores (estrofes diluídas, um fôlego amplo e menos coeso, teor difuso dos âmbitos rítmicos). De uma outra ordem (mas talvez não completamente) é a atenção devotada ao conteúdo de cada estrofe em “se o Universo dizem”, em que o predomínio da ciência, que focaliza certas estrofes — “parece mentira ser parte/ do cosmos este lugar à meia-luz/ mal situado” — contrasta com o enfoque de outras no divino — “neste sofá fazes sentar Deus/ (sobretudo quando não estou em casa)” (p. 28). Exercitação semelhante — embora de sinais distintos — é a que permite a Miguel-Manso estabelecer um xadrez de antinomias que opõe o geral abstracto — “reparar nas coisas pode ser/ reparar no mundo onde estilhaçam as coisas” — ao particular concreto — “antes do velho cepo a copa da oliveira” (p. 58). O poeta que assim se representa, afirmando, numa proposição aparentemente insólita, “fui/lamber poemas para outro lado” (p. 133), pondera, talvez, uma aproximação a esse só na aparência longínquo Virgílio, de quem se dizia cuidar dos versos como a ursa que lambe as crias.

O “compósito equívoco de uma instalação” (p. 127), que comparece num dos versos de Persianas, lembra-nos que a arte que esta poesia produz — e aquele que convoca para junto do seu núcleo reactivo — é uma espécie de pré-rafaelitismo. Na medida em que recua (e recusa) diante do princípio de estetização e do convencionalismo, em prol da fidelidade a certo realismo na representação, no apego à minúcia do concreto. O que talvez descenda, mais ou menos indirectamente, de uma proposta de Um Lugar a Menos (Ed. Autor, 2012) como: “Não se discute a veracidade de um poema, medita-se sobre a verdade de um poema.” Uma distinção que parece pretender impor uma dimensão estética sobre uma estritamente lógica. Os caminhos até lá são tudo menos óbvios. A claridade enganadora que um poema de Ensinar o Caminho ao Diabo (Ed. Autor, 2012) equaciona é análoga ao ouro falso da transparência que o quotidiano impõe. Uma das linhas de conduta da poesia de Miguel-Manso consiste em quebrar a cadeia dessa obviedade incontestada. Opondo-lhe uma iluminação mais consciente. Porque esta poesia é também uma auscultação das razões e insânias do mundo. E desse gesto de abertura nasce um movimento em direcção à possibilidade de outros mundos. Daí que assuma particular relevo a ideia de “sumir/ pelo infinito abaixo” (p. 46), que Manso colheu em Giordano Bruno.

O poema, esse, viverá, talvez, algures entre a grandiosidade da arquitectura e a singeleza da olaria. Entre a magnificência e a escassez, a soberba e a abdicação — “Babel atascada e bamba onde/ o tédio movediço do tema Linguagem empapa/ a exígua leitura que o oleiro modelou” (p. 55).

Sugerir correcção
Comentar