Sauditas arriscam guerra regional para afirmar supremacia face ao Irão

Um conflito interno e político ganha agora os contornos de mais um combate sectário entre muçulmanos xiitas e sunitas. Riad assume que decidiu agir para “enfrentar a agressão do Irão”, que quer “dominar a região”.

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Manifestação de apoio à intervenção saudita na cidade iemenita de Taiz AFP

É pouco provável que a intervenção militar liderada pela Arábia Saudita contra os huthis que nos últimos meses conquistaram vastas zonas do Iémen se transforme numa guerra longa ou inclua uma invasão terrestre. Mas esses são riscos que os sauditas parecem estar dispostos a correr para se afirmarem como líderes regionais, num momento em que a influência do Irão xiita se reforça e os Estados Unidos negoceiam com Teerão, ao mesmo tempo que no Iraque combatem um inimigo comum, o autoproclamado Estado Islâmico.

“Na luta contínua pela supremacia regional entre o Conselho de Cooperação do Golfo, que a Arábia Saudita lidera, e o Irão, é tentador ver cada novo conflito em que os dois países estão envolvidos como um combate de tudo ou nada entre o islão xiita e sunita”, escreve Michael Stephens, que dirige o think tank britânico Royal United Services Institute no Qatar. A tendência repete-se no Iémen, porque os huthis são zaiditas, uma seita minoritária do islão xiita - e recebem algum apoio do Irão - e a coligação formada por Riad é totalmente formada por países de maioria sunita (e incluiu o apoio dos não árabes Turquia e Paquistão).

Um conflito que é essencialmente político – a tribo huthi, concentrada na região de Saada, tem anos de queixas fundadas contra o Governo central, que nunca foi justo com o Norte na distribuição do investimento em infra-estruturas e serviços básicos – passa assim a ser visto como mais um cenário do choque entre sunitas e xiitas. Mais do que o apoio iraniano, o sucesso recente dos huthis deve-se a uma coligação com o seu antigo inimigo, o ex-Presidente Ali Abdullah Saleh, afastado na sequência de protestos pró-democráticos num processo liderado por Riad.

Segundo as chefias militares dos EUA, os sauditas, o seu principal aliado no Médio Oriente, só os informaram de que iriam lançar a ofensiva “mesmo antes de o fazerem”, ainda que a intenção fosse discutida há semanas. Se alguns (analistas e políticos republicanos) vêem aqui a prova de que os EUA não têm uma estratégia clara para os diferentes problemas de segurança na região, e um resultado directo das negociações com o Irão, outros defendem que, pelo contrário, um ataque realizado por países aliados e coordenado com os norte-americanos é o modelo mais favorável a Washington.

Certo é que os sauditas estão cada vez mais convencidos que o Irão é uma ameaça e são cada vez mais decididos quando se trata de agir para a travar. E se a Arábia Saudita já tinha avançado sem os EUA, para reprimir protestos pró-democráticos (da maioria xiita) no Bahrein, em 2011, ou para apoiar grupos armados da oposição a Bashar al-Assad, na Síria, esta intervenção, que envolve dez países e muitos meios, é um grande salto em frente para um país que tradicionalmente tinha nos EUA o garante da sua segurança.

Depois do Iraque, onde Washington derrubou um ditador árabe sunita e abriu caminho à chegada ao poder da maioria xiita, as revoltas de 2011 e a decisão norte-americana de não apoiar o egípcio Hosni Mubarak e de não atacar Assad (nem em 2013, quando este usou armas químicas), ao mesmo tempo que lançava um processo de aproximação ao Irão, alarmaram ainda mais Riad. “Se esta operação for um sucesso, penso que vamos assistir a uma enorme mudança na política externa saudita. Vai ser assertiva e tornar-se mais agressiva ao lidar com o expansionismo iraniano”, afirma Mustafa Alani, analista iraquiano próximo do Ministério do Interior saudita.

Huthis não vão desaparecer
Depois de um primeiro dia com raides lançados essencialmente pela aviação saudita, os Emirados Árabes Unidos fizeram saber que na sexta-feira “participaram intensamente” nos bombardeamentos.

“Os iranianos é que se ingerem nos assuntos dos países árabes, seja o Líbano, a Síria, o Iraque ou o Iémen, e isso nós não podemos tolerar”, afirmou o embaixador saudita em Washington, Adel al-Jubeir. “Temos de enfrentar a agressão do Irão”, que quer “dominar a região”.

No segundo dia de ataques aéreos, membros do Governo iemenita reconhecido internacionalmente – e cujo Presidente, Abd Mansour Hadi, está em Riad – defenderam que esta campanha deve ser curta e limitar-se a enfraquecer os huthis através de bombardeamentos. Os iemenitas sabem que os huthis não vão desaparecer, são uma parte do país (os zaiditas serão 30% dos 25 milhões de iemenitas).

Se a intervenção correr mal e se os iranianos decidirem apoiar mais directamente os huthis (sabe-se apenas que enviam algumas armas), a guerra civil iemenita pode transformar-se num novo conflito regional. Apesar de admitirem essa hipótese, e de terem mobilizado 150 mil soldados na fronteira com o Iémen, o mais provável é que Riad tente evitar uma acção terrestre. Em 2009, os sauditas atacaram posições huthis junto à fronteira e, em resposta, foram humilhados, quando a milícia tribal entrou no seu território e chegou a tomar algumas localidades.

Insistir nos ataques aéreos, por outro lado, vai aumentar o número de vítimas civis e custar o apoio de muitos iemenitas à operação. Ao mesmo tempo, o enfraquecimento dos huthis pode resultar num fortalecimento dos grupos ultra-radicais sunitas – a Al-Qaeda na Península Arábica, que tem a sua base no Iémen, e o próprio Estado Islâmico, que ali reivindicou dois atentados na semana passada – que poderão atacar a Arábia Saudita a partir do país. Iniciar uma guerra, como bem aprenderam os EUA, é sempre mais fácil do que dá-la por terminada.

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