Estará Portugal fora da rota de tráfico de órgãos?

Não há inquéritos na Polícia Judiciária, nem no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

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“O transplante ilegal tende a ser escondido ou disfarçado, por exemplo, de doação altruísta de um parente”, descreve a OCDE DR

Nem a Polícia Judiciária, nem o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nem o Observatório de Tráfico de Seres Humanos têm casos. Como noutros países europeus, o tráfico de pessoas para extracção de órgãos em Portugal refugia-se no não dito, propaga-se no não confirmado, não sai do rumor.

Portugal assinou na passada quarta-feira em Santiago de Compostela, em Espanha, a Convenção contra o Tráfico de Órgãos Humanos. “Isso não quer dizer que existe tráfico de órgãos em Portugal”, enfatiza Manuel Albano, relator nacional do tráfico de seres humanos. Ao assinar aquele documento do Conselho da Europa, Portugal compromete-se a prevenir e combater o tráfico de órgãos; a proteger os direitos das vítimas e a facilitar a cooperação nacional e internacional.

O Código Penal criminaliza o tráfico de seres humanos para extracção de órgãos, não o tráfico de órgãos por si só. Não é que haja um vazio. O regime jurídico protege o direito à integridade física. E o sistema nacional de transplantes proíbe a remuneração e comercialização de órgãos humanos.

Manuel Albano, também coordenador da delegação norte da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), ouviu falar em tráfico de órgãos, “há uns tempos”, mas nunca recebeu “qualquer confirmação formal”. Refere-se a notícias avançadas por alguns órgãos de comunicação social.

Fernando Macário, presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação, recorda as mesmas reportagens. Só lhe ocorrem, porém, um português que foi ao Paquistão e alguns angolanos que foram à China fazer um transplante de rins e apareceram em Portugal com complicações pós-operatórias. O médico remete para “a má qualidade dos estudos”. Um transplante deve ser antecedido de apurado cuidado. Os critérios de histocompatibilidade são fundamentais para aferir a possibilidade de rejeição. Acha que “a maior parte dos transplantes ilícitos não segue as regras”.

É possível fazer transplante de coração, pulmão, fígado, córnea. O mais comum, até por ser mais simples, é o de rim. A Organização Mundial de Saúde estima que 5 a 10% dos transplantes de rins que se fazem todos os anos no mundo resultem de “turismo de transplante”.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) publicou em 2013 um relatório sobre tráfico de pessoas para remoção de órgãos. Nele, explica como as redes transnacionais se servem de engano e coacção para convencer gente em situação de pobreza extrema a vender órgãos por uma pequena porção do dinheiro pago pelos clientes. Este tráfico, lê-se, distingue-se dos outros por envolver médicos, as vítimas serem transportadas para algum sítio pouco tempo e os compradores quase nunca serem criminalizados. “O transplante ilegal tende a ser escondido ou disfarçado, por exemplo, de doação altruísta de um parente”, aponta.

Perante tanto secretismo e tanta cumplicidade, obter estatísticas é quase uma missão impossível. Algumas entidades internacionais arriscam, mesmo assim. O último relatório sobre tráfico de pessoas da Organização das Nações Unidas (2012) apontava para 0,2% de vítimas traficadas para extracção de órgãos. O último do Eurostat (2013) remetia o tráfico de pessoas para remoção de órgãos para a categoria “outras formas”, na qual figuravam ainda a mendicidade forçada, a servidão doméstica, as actividades criminais e os benefícios fraudulentos, que somavam 12%.

Apesar de os valores serem reduzidos, comparando com o tráfico para outros fins, diversos organismos internacionais, como a OCDE têm defendido que é urgente desenvolver uma resposta efectiva. O número aumenta à medida que vai crescendo o fosso entre órgãos em falta e órgãos disponíveis.

Em Portugal, torna Fernando Macário, há duas mil pessoas à espera de um rim. Cada um espera, em média, cinco anos. “A taxa de transplantação renal a partir de cadáver não é má, é uma das mais elevadas da Europa, mas a taxa de transplantes renais de dador vivo é muito baixa”, salienta.

Cada país desenvolve a sua estratégia de prevenção. Em Portugal – onde as autoridades dizem estar atentas mas não ter qualquer indício de situações concretas – só os hospitais públicos estão autorizados a fazer transplantes de doadores vivos ou mortos. Há, refere Fernando Macário, uma afinada avaliação psicológica e social para apurar se o doador está a ser pago ou coagido. O último crivo é o da Entidade de Verificação de Admissibilidade para a Colheita de Transplantação. “Há casos recusados por se entender que a pessoa não está a fazer o que quer”, salienta.

O essencial do tráfico faz-se no sentido dos mais pobres para os ricos. Relatos de académicos, jornalistas e activistas indicam a Turquia, a República da Moldávia e a Ucrânia e outros países da Europa de Leste como tende actividade e ligações aos EUA, ao Canadá e à África do Sul.

Em 2004, o Conselho da Europa lançou um inquérito destinado a perceber o que se passava nesta matéria. Seis membros (Arménia, Estónia, Geórgia, Rússia, Turquia e Ucrânia) reportaram ter detectado tráfico de órgãos dentro das respectivas fronteiras. Outros tantos (Albânia, Bélgica, Croácia, Chipre, França e Reino Unido) informaram que cidadãos seus tinham viajado para a China, para a Índia ou para Turquia para fazer um transplante. Um deles (Geórgia) revelou ter cidadãos que tinham viajado para o estrangeiro para vender órgãos. As respostas então enviadas mostravam já a diversidade de fluxos que o fenómeno pode configurar.

Portugal foi um dos primeiros 14 países a assinar a nova convenção do Conselho da Europa. Além de criminalizar a colheita ilegal de órgãos e o seu uso para transplantes ou outros fins, protege as vítimas, prevendo assistência médica, psicológica, social e jurídica. Ao assiná-la os Estados comprometem-se a garantir a transparência dos respectivos sistemas de transplante de órgãos. O documento, adoptado pelo comité de ministros a 4 de Julho de 2014, só entrará em vigor depois de ter sido acolhido por mais quatro países. Para ter força de lei, terá ainda de ser ratificado pela Assembleia da República e integrado na legislação nacional.

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