Enriquecimento injustificado será crime, mas partidos ainda discutem modelo

Mais do que legislação, Maria José Morgado defende que é preciso que as autoridades tenham meios para técnicos e humanos para a investigação. Paulo Morais pede lei clara e que defina quem fiscaliza.

Foto
Este é o primeiro debate na Assembleia da República do novo ano legislativo Rui Gaudêncio

Da esquerda à direita, as bancadas parlamentares estão disponíveis para viabilizar esta sexta-feira, na votação na generalidade no Parlamento, as diferentes propostas de criminalização do enriquecimento ilícito ou injustificado, mas assumem que há divergências profundas entre elas. Tal como em 2012, o PS é o que está mais isolado, mantendo-se focado no reforço das obrigações de declaração de património dos titulares de cargos públicos.

A deputada do PSD Teresa Leal Coelho, forte defensora da tipificação do crime de enriquecimento ilícito, sustenta que o projecto de lei da maioria é constitucional, embora também reconheça “bons princípios” nas iniciativas do PCP e do BE. E admite não fazer questão de introduzir apenas um instrumento na ordem jurídica. “A censura social legitima esta opção por parte do legislador de proibir e sancionar um determinado tipo de comportamento de manifesta discrepância entre a obtenção de património e os rendimentos declarados”, afirmou, alegando não estar em causa a presunção da inocência na medida em que “nos elementos do crime não há intervenção do visado e nem o silêncio é penalizador”.

Apesar da disponibilidade para debater os projectos na especialidade, a vice-presidente do PSD afirma, no entanto, que “o PS não veio a jogo, apesar dos reptos” neste campo da criminalização do enriquecimento ilícito. Questionada sobre se este debate pode ser contaminado pelo caso do ex-primeiro-ministro José Sócrates, Teresa Leal Coelho rejeitou essa leitura. “Não há nenhum facto que possa contaminar um debate que é abstracto”, afirmou, lembrando que o PSD tenta, “há vários anos”, avançar na tipificação deste crime.

O PS retoma o projecto de 2011 em que reforça e alarga a dirigentes de topo da administração pública a obrigação de declaração de rendimentos bem como o seu controlo.

Apesar de mostrar disponibilidade para viabilizar todas as propostas, o deputado socialista Jorge Lacão é muito crítico do projecto da maioria. “Temos opiniões muito críticas nomeadamente ao projecto de lei do PSD/CDS que vai muito mais além do que é um tratamento proporcional, fazendo aplicar uma solução penal sem demonstrar a ilicitude de aquisição de rendimentos e património”, afirmou, questionando a constitucionalidade da proposta da direita.

“No caso em que não se demonstra o ilícito do comportamento, temos de perguntar qual o bem jurídico a proteger”, afirmou, numa alusão a um dos problemas apontados pelo acórdão do Tribunal Constitucional que chumbou, em 2012, o anterior diploma da Assembleia da República. Pedro Filipe Soares, do BE, também considera que a protecção do bem jurídico está muito difusa no diploma da maioria.

Mais leis sim, mas com mais meios, pede quem investiga
É importante legislar sobre o combate ao enriquecimento ilícito, mas seria tão ou mais importante dotar os serviços de condições para a aplicar na prática. A advertência é de Maria José Morgado, directora do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, uma das vozes mais activas das questões do combate à corrupção.

“Andamos nisto desde 1994. Há pacotes deste género de dois em dois anos que se focam numa ou noutra alteração legislativa, como a criação de novas tipologias criminais, supostas melhorias da fiscalização, protecção de denunciantes”, recorda a magistrada. “Mas são inconsequentes, não aderem ao terreno. Porque o que é preciso é que os serviços tenham capacidade de funcionamento e autonomia de meios humanos e técnicos”, critica a responsável.

“A lei só por si não faz milagres. A perda de bens no caso de um património ampliado incongruente com o declarado já está definida na lei desde 2002, mas tem sido pouco aplicada. E esta punição é a verdadeira inversão do ónus da prova”, considera Maria José Morgado.

“Essa neo-criminalização é vantajosa se, e só se, nós [autoridades] tivermos condições para fazer a análise e tratamento da informação, com peritos, sistemas informáticos e bases de dados. E estamos muito longe disso, acrescenta a magistrada. “Os DIAP dependem do orçamento do Ministério da justiça, não têm nenhuma autonomia financeira adequada às exigências destas investigações, que até estão previstas na legislação europeia e são recomendadas pelo Conselho da Europa no âmbito do GRECO – Grupo de Estados contra a Corrupção.”

Mesmo quando da discussão na especialidade sair uma lei, Portugal pode acabar por ter uma “lei útil, mas continuar sem condições para a aplicar”.

Para Paulo Morais, vice-presidente da Associação Transparência e Integridade, “não é a discussão técnica que interessa à sociedade”, mas antes a aplicação prática da legislação. “A sociedade tem o direito de exigir que, quem exerce funções públicas e ostenta um tipo de vida que vai para além do plausível dos seus rendimentos, seja fiscalizado.” E, por outro lado, “quem exerce funções públicas deve estar sempre disponível para apresentar e justificar a sua vida patrimonial e o seu currículo sem qualquer tipo de ambiguidade”.

Paulo Morais diz esperar que o resultado da discussão na especialidade que se vai seguir seja uma “legislação clara e simples, entendível por todo o cidadão” e que “haja uma clarificação sobre que entidade inicia o processo de fiscalização do controlo do património” – e de preferência que seja uma fiscalização aleatória. Mas este activista teme que, para tentarem conciliar posições, os partidos acabem por chegar a um diploma final “tão estranho e obtuso que não se consiga aplicar ou tão simples que não sirva para nada”.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários