Pode uma medalha da cidade ferir um executivo? No Porto, pode

Medalha de mérito, Grau Ouro, para o angolano Sindika Dokolo foi aprovada com quatro votos contra e uma abstenção.

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O candidato do PCP à Câmara do Porto ainda não está escolhido Foto: Nelson Garrido

Os deputados da Assembleia Municipal do Porto (AMP) aprovaram, por maioria, a atribuição da medalha municipal de Mérito, Grau Ouro, a Sindika Dokolo, coleccionador de arte e marido de Isabel dos Santos, filha do presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. Mas a discussão que precedeu a votação não teve o empresário como figura central. Carla Miranda, a vereadora do PS, que criticara a atribuição da medalha no executivo e que não esteve presente na sessão da assembleia da noite de segunda-feira, esteve no centro do debate. E o presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, sem referir o nome da vereadora, até a mandou ter “dois pingos de vergonha”.

Não houve unanimidade na votação de medalha ao coleccionador que vai trazer ao Porto, a partir da próxima quinta-feira, a importante exposição de arte contemporânea africana You Love me, You love me not – 40 deputados votaram a favor, quatro votaram contra e um absteve-se. Apenas o Bloco de Esquerda (BE), que tem dois deputados na assembleia, anunciou que iria votar contra. Já representantes da CDU, do PSD e do movimento Rui Moreira: Porto, o Nosso Partido anunciaram os votos a favor. O PS permaneceu em silêncio.

O nome de Carla Miranda não foi pronunciado durante toda a sessão, mas as referências à vereadora foram óbvias, começando pelas da deputada da bancada de Rui Moreira, Adriana Aguiar Branco. Depois de um longo elogio ao trabalho desenvolvido pelo vereador da Cultura, Paulo Cunha e Silva, a deputada defendeu que “pouco importa a origem da colecção, muito menos a qualificação do seu proprietário”, afirmando que quem se opusesse à atribuição da medalha por esses motivos tinha “macaquinhos no sótão”. E, depois, continuou: “Fez bem o senhor presidente em propor a atribuição desta medalha. Fez uma leitura e interpretação inteligentes, sem complexos nem preconceitos, do regulamento. Quem se deixa amarrar à estrita leitura de um regulamento, para deitar abaixo, demonstra apenas pequenez de espírito”.

Na reunião do executivo em que foi votada a atribuição da medalha, Carla Miranda começou por dizer que se iria abster, por considerar que ela não cumpria o regulamento subjacente a estas distinções. A socialista acabou por mudar o voto para favorável, depois de o vereador do PSD, Amorim Pereira, ter apelado à unanimidade neste tipo de votações. A vereadora afirmou, contudo, que iria fazer uma declaração de voto para anexar ao seu voto favorável.

A posição da vereadora – a única do PS a quem não foi atribuído qualquer pelouro e que, desde o início do mandato, tem assumido várias posições divergentes das da coligação que o líder da bancada socialista no executivo, Manuel Pizarro, assumiu com Rui Moreira – caiu mal na maioria camarária e Manuel Pizarro convocou mesmo uma reunião do PS-Porto com a intenção de lhe retirar a confiança. Pizarro acabaria, contudo, por recuar, conforme o PÚBLICO noticiou.

Ontem, nem Pizarro nem qualquer deputado do PS se pronunciaram, quando Adriana Aguiar Branco, primeiro, e Rui Moreira, depois, criticaram a vereadora socialista.

Rui Moreira interveio na sessão da AMP depois de ouvir Ada Pereira da Silva (BE) e Luís Artur (PSD) assumirem posições divergentes sobre a forma como votar uma proposta deste tipo. A deputada bloquista enalteceu a importância da exposição, mas disse que os dois deputados do Bloco não viam “justificação” para a atribuição da medalha, pelo que iam votar contra. Para a deputada, a exposição chegou ao Porto porque “se juntou a fome com a vontade de comer”, pelo que a atribuição da medalha pode ser encarada como uma “banalização” deste galardão. “Há uma fundação que tem como objectivo nobre a divulgação da arte africana. E é esse objectivo, que o Porto, com vontade de comer, consegue que passe por aqui. Sinceramente? Não sentimos que haja qualquer justificação para uma medalha de mérito”, disse.

Líder da bancada social-democrata na AMP, Luís Artur falou então para dizer que, mesmo “comungando de parte do que o BE diz” e também achando “que se está a banalizar este tipo de situações honoríficas”, iria votar a favor. “Entendemos que neste tipo de situações, não estando em causa pessoas, o voto deve ser por unanimidade”, defendeu.

Com a concretização desta espécie de déjà vu em realação ao que se passara na reunião do executivo, Rui Moreira esclareceu a assembleia que “não era preciso” votar a medalha por unanimidade. E enalteceu a posição assumida pelo BE, em detrimento da de Carla Miranda. Apesar de o nome da vereadora não ser pronunciado, a associação foi óbvia, quando o autarca afirmou: “Mais vale sermos claros, assumirmos as nossas diferenças e dizermos, como a senhora deputada [Ada Pereira], 'eu voto contra'. O que não deve acontecer é eu votar a favor da unanimidade e depois vir cá fora e dizer 'eu votei, mas não concordo'. Tenhamos dois pingos de vergonha. É razoável que as pessoas não concordem, não devem é ter esta dualidade”, disse Rui Moreira, acrescentando: “A situação razoável é que os senhores deputados se sintam livres para votar. Eu, se estivesse em desacordo, vinha aqui dizer 'voto contra'. Dualidades não são bem o meu estilo. O Porto é uma cidade livre e devemos ter a liberdade de dizermos o que queremos.”

Contactada pelo PÚBLICO, Carla Miranda não quis comentar as críticas de que foi alvo nem o silêncio do PS, limitando-se a afirmar: “Concordo com o senhor presidente. A liberdade na cidade cumpre-se e cumpriu-se neste caso, porque foi em liberdade que votei. Quanto ao resto, peço que leiam a minha declaração de voto”.

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