Milícias xiitas e sunitas na primeira grande ofensiva contra radicais no Iraque

Muitos milicianos xiitas e o apoio directo do Irão nas operações fazem aumentar os receios de represálias por parte da população árabe sunita. Operação contra Tikrit é primeiro grande ensaio, antes de Bagdad decidir avançar para Mossul.

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Preparativos da ofensiva contra o Estado Islâmico Thaier Al-Sudani/Reuters

O objectivo é Tikrit mas em jogo está muito mais do que esta cidade 160 quilómetros a Norte de Bagdad, capital da província de Saladino, onde Saddam Hussein escolhia os seus mais fiéis colaboradores. A ofensiva lançada pelo Governo do Iraque envolve o Exército, milícias xiitas e grupos de combatentes de tribos sunitas, num total de perto de 30 mil homens, e é a maior desde que os jihadistas avançaram pelo Norte do país, vindos da Síria, e declararam um califado.

Do sucesso desta operação depende a recuperação da confiança nos militares, a reconquista de Mossul, segunda maior cidade iraquiana, o futuro da presença dos radicais no Iraque e a própria reunificação do país. Os combatentes do autodesignado Estado Islâmico incluem altos quadros da ditadura de Saddam e muitos árabes sunitas que estavam fartos da marginalização imposta pelo poder xiita de Bagdad.

Até agora, todas as vitórias obtidas pelo Governo contra os radicais têm tido milicianos xiitas na linha da frente (aconselhados e apoiados por forças iranianas) e habitualmente seguem-se atrocidades contra civis sunitas. Foi por isto que o primeiro-ministro, Haider al-Abadi, afirmou que “a prioridade imposta ao Exército e às forças que o ajudarão é preservar a segurança dos cidadãos”, mensagem que repetiu várias vezes nas redes sociais, apelando “à protecção dos civis e das suas prioridades com o maior cuidado”.

Mas nem todos tiveram o mesmo cuidado nas suas declarações e segundo o think tank norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra, a “maioria” dos residentes em Tikrit já começou a fugir em direcção a Mossul, controlada pelos jihadistas, ou Kirkuk, nas mãos dos curdos, com medo de represálias. No fim-de-semana, Hadi al-Ameri, que lidera as Unidades de Mobilização Popular, uma coligação de milícias, pediu à população que abandonasse Tikrit em 48 horas “para vingar Speicher”.

Speicher é o nome de uma base militar perto de Tikrit onde os jihadistas massacram centenas – segundo algumas informações, 1700 – de jovens soldados xiitas no Verão passado, quando conquistaram a zona. Muitos iraquianos de confissão xiita acreditam que as tribos sunitas ajudaram os radicais.

“O nosso objectivo é libertar a população da opressão e do terrorismo do Daash [como sírios e iraquianos chamam ao Estado Islâmico]”, insistiu Abadi, que se deslocou a Samarra, a 125 quilómetros de Bagdad, para supervisionar a ofensiva. O primeiro-ministro também ofereceu uma amnistia aos árabes sunitas que “se enganaram e decidam depor as armas”. O primeiro grande obstáculo das tropas reunidas por Abadi, antes de Tikrit, vai ser Dhor, uma cidade 40 quilómetros a Norte de Samarra, onde foram mobilizadas grande parte das forças antes do lançamento da ofensiva.

Apoiantes da ditadura

Dhor, entre Samarra e Tikrit, é descrita por responsáveis iraquianos como “bastião do Daash”, como foi logo em 2013 bastião da resistência árabe sunita à ocupação norte-americana. Saddam foi encontrado oito meses depois da invasão escondido numa quinta na zona de Tikrit, mas sempre se especulou que por trás de muitos ataques contra os Estados Unidos e Bagdad estivesse um grupo liderado por Izzat Ibrahim al-Douri, natural de Dhor e vice-presidente do Conselho de Comando Revolucionário quando o ditador foi derrubado.

“O objectivo é certamente acabar de libertar a província para permitir o regresso dos deslocados”, diz Abdel Wahah Saadi, comandante militar da província de Saladino. “Mas trata-se também de um trampolim no caminho da libertação de Mossul”, a enorme cidade, capital do Norte, que os jihadistas tomaram em Junho, um pouco antes de conquistarem Tikrit, provocando a fuga de 1,5 milhões de pessoas.

O Exército iraquiano foi incapaz de travar os combatentes Daash, menos de 20 mil. As forças curdas e as milícias xiitas têm sido responsáveis pelas vitórias já alcançadas contra os radicais, em localidades ou cidades mais pequenas, na província de Diyala, a Leste de Bagdad (de onde os jihadistas foram expulsos), ou de Anbar, que se estende da capital para ocidente, até à fronteira síria. Estes avanços também têm contado com raides aéreos da coligação internacional formada pelos Estados Unidos, mas, pelo menos para já, nesta ofensiva só está envolvida a aviação iraquiana.

Exército de ocupação

Quem não esconde o seu envolvimento é o Irão, que já divulgou mesmo imagens do general Qasem Suleimani no terreno – Suleimani é o comandante da Força Quds, o serviço de operações especiais dos Guardas da Revolução iranianos e está há meses no Iraque, tendo ajudado a mobilizar milícias pró-iranianas, financiando-as, e supervisionado até a defesa de Bagdad.

Do lado de lá, os jihadistas divulgaram um vídeo onde executam quatro homens que dizem pertencer a uma tribo sunita da região de Tikrit, membros das Sahwa, as milícias que os EUA formaram para expulsar do país a Al-Qaeda no Iraque, grupo que haveria de dar origem ao Daash, e que as autoridades iraquianas tentaram reagrupar depois de anos sem lhes pagar salários.

Mais difícil do que derrotar os radicais será mesmo convencer as populações da boa vontade desta ofensiva e do Governo. “As forças de segurança são esmagadoramente xiitas, tanto o Exército como a polícia”, nota o analista norte-americano Kenneth Pollack. “Nestas circunstâncias, operações no país sunita – as províncias de Anbar, Níneve [Mossul] e Saladino – podem ser desastrosas. A população sunita está aterrorizada com as notícias de limpezas étnicas brutais por parte de tropas e milícias xiitas… Pode acontecer que os sunitas vejam as forças do Governo (e até os curdos) não como libertadores mas como um Exército xiita de conquista.”

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