“O que é preciso agora é os governos desempenharem o seu papel”

Guntram Wolff defende que a zona euro precisa de enfrentar a “divergência muito significativa” entre as suas várias economias, sob pena de persistir uma “permanente fragilidade em certos países”.

Foto
Para Guntram Wolff, director do think tank Bruegel, não é claro que a acção do BCE traga mais crédito à economia Horacio Villalobos/Corbis

O Banco Central Europeu (BCE) começa agora a realizar as compras de dívida pública com que espera reanimar a economia da zona euro e evitar o risco de deflação. Guntram Wolff, director de um dos principais think tank económicos europeus, elogia a decisão do banco central, mas teme que sem mudanças na política económica seguida pelos Governos o efeito possa não ser o desejado.

Nos últimos meses, tivemos o anúncio do BCE, o plano de investimento Juncker e a negociação com o novo Governo grego. Alguma coisa de fundamental está a mudar na política económica na Europa, ou são só pequenos acertos de estratégia?
É justo dizer que o início deste ano foi bem mais do que business as usual. O programa de compra de activos do BCE é muito importante para tentar contrariar as tendências deflacionistas que temos tido nos últimos dois anos. Teria sido melhor se tivesse sido mais cedo, mas é difícil para o BCE agir, dado que tem 19 Tesouros diferentes. Por isso, o BCE demorou tempo, demasiado tempo, mas finalmente chegaram a uma boa decisão, importante para reanimar a actividade. Pode não ser suficiente, mas é uma decisão necessária.

Pode não ser suficiente por aquilo que o BCE não faz por si só ou por aquilo que outros actores não fazem?
Bom, acho que dificilmente poderiam ter feito mais no BCE. Podia ter sido mais cedo, claro, mas em relação à dimensão da compra de activos, penso que é bastante significativa. Agora, o que é preciso é os governos desempenharem o seu papel. Isso inclui, por um lado, o ajustamento estrutural que está a ser feito mas que ainda não está concluído. Penso que há uma divergência muito significativa entre as várias economias da zona euro que precisa de ser enfrentada. Se não o for, vamos continuar a ver uma permanente fragilidade em certos países. E depois o lado orçamental.

O plano de investimento apresentado pela Comissão pode dar uma ajuda?
O plano Juncker pode ser um bom começo, mas não é suficientemente grande para poder mudar de forma significativa a procura na zona euro. Por isso, os governos têm agora de assumir o seu papel.

E está optimista que isso aconteça?
Não estou muito optimista do lado estrutural, devo dizer, mas tento. Pode-se dizer que, tanto na França como em Itália, há progressos a serem feitos, ultrapassando algumas estruturas muito rígidas que temos e melhorando o desempenho nos dois países. É um começo, mas podia ter sido mais ambicioso, especialmente em França. E do lado orçamental, neste momento a zona euro tem uma posição orçamental neutral, enquanto devia ser uma posição ligeiramente expansionista. Há a esperança que o plano Juncker possa permitir isso, mas o problema com este plano é que há muito pouco dinheiro público investido e há demasiado optimismo que isso possa desencadear muito investimento privado. Se se pudesse duplicar o dinheiro público que é colocado no programa, passando dos 21 mil milhões de euros anunciados, para 40 mil milhões ou mesmo 60 mil milhões, então provavelmente ficaríamos com um bom conjunto de políticas económicas na zona euro. Infelizmente, acho que não vamos atingir estes valores.

E a Alemanha assumir uma política orçamental mais expansionista, é possível?
Possível é, mas politicamente não é desejado, por isso não vai acontecer. A Alemanha tem o espaço orçamental para o fazer, não há dúvida. Mas o grande argumento usado na Alemanha contra qualquer estímulo orçamental é a questão demográfica, a questão do envelhecimento e dos custos orçamentais que isso implica para o futuro.

É um argumento válido?
Realmente a Alemanha tem um problema demográfico e que está a fazer-se sentir bastante rapidamente, em comparação com outros países da zona euro. Mais ou menos ao mesmo tempo que a Itália. Mas não se enfrenta o problema demográfico poupando no investimento de curto prazo. O que se deve fazer é reformar o sistema de pensões e, por exemplo, aumentar a idade da reforma. O governo alemão decidiu fazer exactamente o contrário. A idade da reforma foi reduzida, o que é mau para a sustentabilidade de longo prazo das finanças públicas, ao mesmo tempo que se corta no investimento e na despesa pública. É pura e simplesmente uma escolha errada de política.

O BCE começa agora a comprar dívida. Qual acha que será o impacto no curto prazo?
O impacto já começou a ser sentido. A taxa de câmbio do euro tem vindo a cair de forma significativa, mesmo antes de a decisão ser anunciada. Também vimos que as taxas de juro desceram ainda mais. E apesar de estarem já tão baixas, prevejo que ainda possam cair mais. As taxas de juro da Alemanha a cinco anos estão agora em terreno negativo. As taxas de juro a 10 anos estão em 0,3%, podem cair para 0,2% ou mesmo 0,1%, o que seria realmente incrível. Pedir dinheiro emprestado a 10 anos pagando juros de apenas 0,1%. Penso que isto, nomeadamente a descida do valor do euro, vai ter um efeito positivo nas exportações, certamente da Itália, da França e também da Alemanha.

E vai ter um impacto positivo no crédito que chega à economia?
Esse é o aspecto menos claro dos impactos da medida do BCE. Não é evidente que as pessoas vão começar a investir em projectos mais arriscados. Acho que o principal efeito virá mesmo da taxa de câmbio.

Para os países periféricos, onde há um maior problema de acesso ao crédito, o impacto será menor?
Parece realmente haver um problema de acesso ao crédito em determinados sectores, especialmente para as PME de países da periferia como Portugal. Mas há sempre a dúvida se é um problema de falta de acesso ao crédito ou de falta de procura de crédito.

E é por isso que o efeito da medida do BCE pode não ser tão forte, em países em que a procura de crédito já é muito baixa…
Esse é o problema de uma política monetária que é feita com as taxas de juro já no limiar da barreira do zero. O impacto da política monetária torna-se mais limitado porque as taxas de juro não se podem mover muito mais. Aquilo que se pode mover é a taxa de câmbio e esta moveu-se. Depois há o papel da política orçamental e das reformas estruturais. E é esse que falta. Se cada país tivesse a sua divisa, o papel da política orçamental poderia ser muito mais usado, porque cada país imprimia mais dinheiro. Agora numa união monetária é difícil, porque isso implicaria transferências do centro para a periferia, que é algo que esta união monetária não queria que se verificasse. É por isso que há tanta resistência a uma política orçamental expansionista na periferia, especialmente em países onde não há espaço de manobra orçamental. A Grécia é claro o caso mais extremo, uma vez que basicamente já não há recursos. Cada euro adicional que o Governo grego gasta é à custa de empréstimos de outros países da zona euro. E é por isso que a aprovação do parlamento alemão à extensão do empréstimo na Grécia foi dada com tanta relutância. Há o medo de que o dinheiro não volte.

Com tanta relutância, por quanto tempo é que acha que este acordo com a Grécia pode durar?
Isso é totalmente impossível de prever. Ainda acho que o cenário mais provável é que a Grécia se irá manter no euro, e que se vá conseguindo resolver os problemas um de cada vez. Mas as probabilidades não são muito mais do que 50%. A situação é muito precária. Certamente que em Junho haverá a necessidade de um programa adicional para amortizar a dívida do BCE e do FMI e esse será um momento em que mais recursos serão necessários e será preciso chegar a um acordo. E além disso a economia deteriorou-se muito nos últimos meses, especialmente com o novo Governo. O Governo desfez muito do progresso que tinha sido feito na Grécia e foi muito mau para a economia grega.

Por causa das medidas que anunciou ou da forma como decorreram as negociações?
Por causa das duas coisas. A abordagem à negociação fez com que a confiança na economia se deteriorasse muito. E isso é um grande problema. Se a economia entra outra vez em recessão no primeiro trimestre, um excedente primário pode não ser atingido porque as receitas fiscais estão a cair ainda mais.

Para um acordo mais duradouro ser possível quem é que acha que tem ainda de ceder mais?
Tem havido cedências importantes: as exigências que eram feitas para o excedente orçamental primário podem mesmo desaparecer, tendo em conta o que está a acontecer à economia. Mas não podem ir para défices, porque isso significaria a continuação da acumulação de dívida pela Grécia. Vai ser preciso chegar a algum tipo de excedente primário, mas ninguém está a pedir aquilo que era pedido anteriormente, e que era 4,5%, porque as pessoas sabem que é completamente irrealista e seria ainda mais penalizador para a economia grega. Nesse aspecto, o espaço de manobra negocial que existe é bastante claro. O acordo pode estar num valor para o excedente entre 1% e 1,5%, talvez 2%. Se fosse mais baixo, haveria um problema com a trajectória da dívida, o que conduziria a uma reestruturação. E isso os credores não estão preparados para aceitar.

Que tipo de excedente é preciso para evitar a necessidade de uma reestruturação de dívida?
De acordo com os meus cálculos, se se tiver nos próximos 20 anos um excedente orçamental primário de 2% e um crescimento nominal de 2% - o que não é assim tanto para a Grécia porque depois de um grande recessão é possível uma retoma forte e a troika está a prever um crescimento nominal de 5% - o rácio da dívida no PIB continua a descer, chegando próximo dos 110% em 2030. Por isso é que acredito que há espaço para que se chegue a um acordo: a Grécia tem de conseguir ter um pequeno excedente orçamental primário, algo que não seja excessivo, e 2% é algo que é alcançável e que outras economias conseguiram. Além disso, já ficou estabelecido anteriormente que se a situação económica se deteriorar mais, as condições de pagamento da dívida podem ser novamente aliviadas. Acho que isso deveria ficar explicitamente escrito: que se a economia se portar muito mal, um determinado perdão de dívida seria concretizado. Nesta fase há muita resistência a que isso possa ser feito, mas implicitamente esse entendimento já existe. Ninguém quer dizer isso aos eleitores, mas as pessoas sabem que, se não se cresce, não se consegue pagar a dívida toda.

Se há este espaço de manobra, porque é que as probabilidades de um acordo não são mais altas?
O problema não está nas questões técnicas. O problema neste momento é político. O Governo grego, no dia anterior à votação do Bundestag, dizer que precisa de uma reestruturação, é algo que é feito para consumo eleitoral interno. Mas depois, o outro lado também tem os seus próprios eleitores para quem tem de falar. Há um problema político que é ainda difícil de resolver. Se o Syriza tivesse começado por fazer uma ou duas grandes medidas, como nomear um nome muito forte para a cobrança de impostos, garantir que os ricos iam começar a pagar impostos, pôr os media internacionais a falar disso, depois seria muito mais fácil conseguir os acordos do Eurogrupo, porque no fim de contas toda a gente quer um sucesso, ninguém quer um colapso porque toda a gente perde. O que agora está em causa é como é que, politicamente, cada uma das partes não perde a face.

Do lado alemão, o que é que seria perder a face?
O que a Alemanha nunca irá aceitar é que passe a imagem para os seus eleitores de que foram chantageados pela Grécia. E é por isso que do lado grego teria sido muito mais inteligente se tivessem começado por mostrar que eram diferentes do governo Samaras em muitas questões para depois, sem barulho mediático, dizer que precisam de um acordo melhor, de um excedente primário mais baixo, de menos condições. Escolheram uma estratégia de confronto e isso não os ajudou nada.

Na Alemanha há muita gente a dizer que uma saída da Grécia do euro não seria assim tão má para a zona euro. É neste momento um pensamento prevalente na Alemanha e no seu Governo?
Há muita gente a dizer isso, mas ninguém tem qualquer tipo de certeza. Sabemos que a exposição directa à Grécia diminuiu em relação ao passado, mas também sabemos que há muitas coisas que não são lineares neste tipo de processos. Por exemplo, se isso acontecesse, sabemos mesmo o que é que os investidores por esse mundo fora fariam com as obrigações portuguesas? Penso que não sabemos. Temos alguns dados que nos fazem pensar que o contágio pode ser mais pequeno mas a incerteza continua presente. E depois há as questões geoestratégicas que uma saída da Grécia implicaria, e que são levadas muito a sério por Berlim e por Paris, nomeadamente ao nível dos chefes de Estado. E eles não querem que isto expluda. E a Grécia certamente que não quer porque isto seria muito dramático para eles. Para que haja um acordo, o que ambas as partes têm de fazer é pensar menos no consumo eleitoral doméstico.

Sugerir correcção
Comentar