Um Óscar para lembrar que a espionagem ainda é notícia

Citizenfour, o documentário sobre as revelações de Edward Snowden, traz de volta o tema da privacidade online e das concessões que podem ser feitas para reforçar o sentimento de segurança.

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Citizenfour ganhou o Óscar de melhor documentário DR

Poucos segundos depois da entrega do Óscar de melhor documentário, quando a realizadora Laura Poitras e o jornalista Glenn Greenwald ainda caminhavam para fora do palco do Dolby Theatre, em Los Angeles, o anfitrião da gala arrancava algumas gargalhadas à audiência com uma piada sobre o homem que tinha proporcionado aquele momento: “O foco de Citizenfour, Edward Snowden, não conseguiu estar presente aqui esta noite por uma traição qualquer.”

O trocadilho com “razão” funciona tão bem na língua portuguesa como na língua inglesa (reason/treason), tal como o debate sobre se o principal responsável pela maior fuga de informação da história dos serviços secretos norte-americanos é um herói ou um traidor – uma discussão que começou no final da Primavera de 2013 e que prossegue ainda hoje, quase dois anos depois.

O documentário (estreia em Portugal no próximo dia 12) foi filmado quase exclusivamente durante os dias em que o antigo analista da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla original) esteve hospedado num hotel em Hong Kong, onde entregou aos jornalistas Laura Poitras e Glenn Greenwald a montanha de segredos que retirara ilegalmente dos servidores da maior agência de serviços secretos do planeta.

Nesse final de Primavera de 2013, o mundo foi surpreendido por uma avalancha de revelações sobre vigilância permanente e espionagem em larga escala que até então percorriam o imaginário da literatura e do cinema e as teorias mirabolantes de bloggers sem crédito, atiradas para o caixote do lixo das conspirações ao mesmo ritmo com que surgiam na Internet.

A tendência para colocar Edward Snowden na lista dos bons ou na lista dos maus é inevitável, mas é também simplista – e vem com o perigo acrescido de deixar para segundo plano a discussão sobre a eficácia dos programas de espionagem em larga escala e o impacto que eles têm na privacidade dos cidadãos e na luta contra o terrorismo.

A percentagem de norte-americanos dispostos a abdicar da sua privacidade em troco de um maior sentimento de segurança tem vindo a descer ao longo dos anos, mas as sondagens indicam que continua a oscilar consoante a proximidade no tempo em relação a um atentado terrorista. Em 2013, após as revelações de Edward Snowden, um recorde de 39% de inquiridos numa sondagem Washington Post/ABC News diziam não admitir qualquer intromissão na sua vida privada, uma percentagem que desceu para 32% após os atentados em Paris no mês passado.

Ainda assim, a maioria dos cidadãos continua a preferir o sentimento de segurança à privacidade total, o que não impediu o jornalista conservador Reihan Morshed de declarar, na semana passada, que “os snowdonistas estão a ganhar”.

“Por exemplo, a NSA precisa de pessoas com capacidades técnicas para fazer com que o seu vasto aparelho de vigilância funcione. Sem grande surpresa, essas pessoas são geralmente homens jovens e peritos em tecnologia, com uma forte inclinação anti-autoritária, e muitos poderão identificar-se com Snowden. O resultado é que a NSA tem sido obrigada a alterar as suas tácticas de recrutamento. A agência está agora mais céptica em relação a jovens hackers com pouca educação formal e virou a sua atenção para o recrutamento de licenciados em universidades que produzem um grande número de soldados, que são vistos como pessoas mais fiáveis”, escreveu Reihan Morshed no site Salon.

Apesar de muitos estudos mostrarem que há mais cidadãos preocupados com a sua privacidade online, nenhum indica que as revelações de Snowden mudaram fundamentalmente a forma como os utilizadores interagem com redes sociais como o Facebook, com motores de busca como o Google ou com o que escrevem nos seus emails – afinal, quem não deve, não teme. Certo?

Uma das pessoas mais habilitadas a comentar esse princípio tantas vezes invocado é o presidente da Google, dona do gigante motor de busca com o mesmo nome que se tornou sinónimo de pesquisa em quase todas as línguas.

Em Dezembro de 2009, Eric Schmidt deixou os defensores da privacidade online com os cabelos em pé, com uma resposta a uma pergunta da MSNBC sobre se os utilizadores poderiam partilhar informação com o Google como se estivessem a falar com “um amigo em quem podem confiar”.

“Se têm alguma coisa que preferem manter em segredo, então talvez seja melhor não fazê-lo.”

Quatro anos antes desta declaração, em Julho de 2005, a jornalista do site de tecnologia CNET Elinor Mills resolvera testar a relação de Eric Schmidt com o que ele considerava ser informação privada (que não devia ser partilhada no Google) e informação que cabia na categoria do argumento “quem não deve, não teme”.

“Bastaram 30 minutos no Google para descobrir que a fortuna de Schmidt estava avaliada em 1,5 mil milhões de dólares no ano passado. (…) Ele e a sua mulher Wendy vivem na cidade de Atherton, no estado da Califórnia, onde, há cinco anos, durante um jantar de recolha de fundos pago a 10.000 dólares por prato, o então candidato presidencial Al Gore e a sua mulher, Tipper, dançaram enquanto Elton John cantava ‘Bennie and the Jets’. Schmidt também esteve no festival Burning Man, no Nevada, e é um ávido piloto amador.”

Eric Schmidt reagiu pouco depois, e a sua resposta foi comentada num artigo publicado à época no The New York Times: “David Krane, director de relações públicas da Google, telefonou ao director da CNET e queixou-se da revelação de informações privadas sobre o sr. Schmidt. Mais tarde, o sr. Krane voltou a telefonar para dizer que a sua empresa não iria voltar a falar com nenhum jornalista da CNET durante um ano.”

A noção de privacidade online varia muito de pessoa para pessoa, e ainda mais de país para país – se em Portugal uma qualquer equipa de espiões teria mais que fazer do que tentar identificar conversas sobre as políticas da troika, ler posts no Facebook sobre a cor de um vestido ou ver fotografias de pés na praia partilhadas no Instagram, é preciso perceber que em países com uma situação política próxima de uma ditadura, a discussão em privado sobre alternativas democráticas pode dar direito a cadeia, ou ainda pior.

Para o activista e jornalista canadiano Cory Doctorow, é tudo uma questão de confusão entre o que é privado e o que é segredo: “Temos uma infeliz tendência para misturar o que é pessoal e privado com o que é segredo, e dizemos: 'Bem, já que esta informação não é segredo, e é do conhecimento de outras pessoas, como é que se pode dizer que é privada?'”

Numa palestra na American Library Association, Doctorow terminou a sua argumentação com alguns exemplos: “A verdade é que há muitas coisas que não são segredo, mas que são privadas. Todos nós fazemos algo em privado, mas não em segredo, quando vamos à casa de banho. Todos nós temos pais que fizeram pelo menos uma vez algo em privado que não é nenhum segredo, caso contrário não estaríamos aqui.”

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