Reino Unido aprova fertilização in vitro com material genético de três pessoas

Reino Unido é o primeiro país a aprovar uma técnica destas, que será usada só nos casos de doenças genéticas associadas às mitocôndrias – as baterias das células, herdadas sempre pela via materna.

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Arquivo João Guilherme

No Reino Unido, a Câmara dos Comuns aprovou esta terça-feira a fertilização in vitro com o uso de material genético de duas mulheres e de um homem. Desta forma, o Reino Unido tornou-se o primeiro país a aprovar legislação que poderá dar origem a pessoas com linhagens genéticas provenientes de três pais. A medida foi pensada para evitar as doenças genéticas que estão associadas às mitocôndrias, e que afectam uma em cada 6500 crianças.

A lei estava a ser discutida desde 2008. Na votação, 382 membros do Parlamento votaram a favor da mudança da lei, enquanto 128 deputados votaram contra. A proposta será ainda votada na Câmara dos Lordes, mas a probabilidade de ser aí rejeitada é baixa, defende o jornal britânico The Guardian. Antes de a técnica chegar às clínicas a Autoridade de Embriologia e Fertilização Humana do Reino Unido terá de autorizá-la.

As doenças genéticas associadas às mitocôndrias afectam os órgãos que necessitam de muita energia como o cérebro, o coração ou o fígado. As mitocôndrias são pequenas estruturas em forma de bastonetes arredondados, que existem dentro de quase todas as células do corpo e que transformam o açúcar em energia. Esta energia é usada para todas as funções celulares, ou seja, para o corpo trabalhar.

Mas tal como as células têm material genético em forma de cromossomas no seu núcleo, também as mitocôndrias têm material genético dentro de si, que comanda aspectos do seu funcionamento. As mitocôndrias têm uma certa liberdade nas células e podem, por exemplo, dividir-se. Cada pessoa herda as suas mitocôndrias da linha materna – elas estão nos ovócitos e, por isso, passam de mães para filhos. Se uma mãe tiver uma doença genética das mitocôndrias, vai transmiti-la ao filho.

No entanto, os genes das mitocôndrias são menos de 0,2% do genoma humano. Enquanto os 23 pares de cromossomas no núcleo das células contêm cerca de 20.000 genes que comandam o fabrico de proteínas e que ajudam a definir cada pessoa – a personalidade, a altura, o peso ou a cor dos olhos –, os 37 genes das mitocôndrias estão somente relacionados com a produção de energia nas células.

Quando há mutações nestes genes mitocondriais, podem então surgir diferentes tipos de doenças: surdez, diabetes, doenças cardiovasculares, epilepsia e até doenças mentais. Algumas doenças são mais ligeiras, mas outras ameaçam a vida das pessoas. No Reino Unido, há 3500 mulheres com mutações no ADN mitocondrial que podem, potencialmente, passar essas doenças aos filhos, de acordo com um relatório do Parlamento inglês. Não há tratamentos para estas doenças.

Para evitá-las, os cientistas da Universidade de Newcastle, que desenvolveram a nova técnica de transferência nuclear, propõem um tipo de fertilização in vitro que passa pela doação de ovócitos de uma mulher com mitocôndrias saudáveis. Primeiro, retira-se do ovócito doado o seu núcleo, onde estão os cromossomas humanos, usando a técnica de microinjecção intracitoplasmática. Neste ovócito (sem o núcleo original mas com as mitocôndrias saudáveis) podem ser introduzidos o núcleo do ovócito da mãe – evitando assim transmitir as suas doenças das mitocôndrias – e o núcleo vindo do espermatozóide do pai.

O futuro bebé terá, deste modo, a grande maioria do material genético proveniente do pai e da mãe, e uma pequena porção de material genético – aquele que existe nas mitocôndrias – de uma dadora, que permanece anónima e que na proposta da nova lei não terá direitos legais sobre a criança.

“O ponto de partida é positivo”, disse ao PÚBLICO o geneticista Alberto Barros, membro do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida. “Esta é uma técnica experimental e há que ter cautela. Mas é um passo muito importante no sentido de evitar a transferência das doenças genéticas das mitocôndrias.”

A proposta de lei era apoiada pelo Governo de David Cameron. Devido a questões bioéticas não havia disciplina de voto nas bancadas. Algumas das críticas que se ouviram no Parlamento britânico, nesta terça-feira, prendiam-se com aspectos de segurança da técnica e possíveis efeitos na saúde, com a elaboração e aprovação da lei a fazer-se de forma muito rápida, sem permitir uma reflexão séria e, principalmente, com o facto de poder abrir a porta a manipulações genéticas e à eugenia.

“Isto vai ser passado ao longo de gerações, as implicações [desta técnica] não podem ser previstas”, disse Fiona Bruce, deputada do Partido Conservador, que defendeu o voto contra. “Mas uma coisa é certa, uma vez que esta alteração seja feita, ou como alguém disse, uma vez que o génio tenha saído da lâmpada, uma vez que estes procedimentos que nos foram pedidos para autorizar sejam aprovados, a sociedade não vai poder voltar para trás”, acrescentou, citada pela emissora britânica BBC.    

Mas os defensores da nova técnica adiantaram que não se estava a pisar nenhum risco vermelho na manipulação genética e que esta era a melhor forma de evitar estes problemas genéticos, depois de os cientistas terem passado décadas em vão a tentar encontrar uma cura para as doenças das mitocôndrias.

“Este é um passo arrojado para o Parlamento, mas é um passo informado e considerado”, defendeu Jane Ellison, secretária de Estado da Saúde Pública, citada pela BBC. “É [o fruto da] melhor investigação no mundo feita num regime de regulação muito respeitado. E para muitas famílias afectadas isto é a luz ao fim do túnel.”

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