Haverá contactos íntimos sem crime?

Tribunal de Vila Nova de Gaia absolve rapazes de 12 e 13 anos acusados de abusar de rapaz de oito. Associação que presta serviços de apoio a vítimas de crime pede recurso.

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Quando a justiça não se faz, “não é só a vítima que não vê o seu dano reparado. É o agressor que não recebe um sinal" Daniel Rocha

A mãe via-o “muito nervoso”, perguntava-lhe o que se passava, mas ele nada dizia. A mãe notava-lhe sangue nas fezes, tornava a perguntar-lhe o que se passava e ele tornava a nada dizer. Um dia, na sua linguagem infantil, o rapaz, de oito anos, disse-lhe que era abusado por dois amigos, de 12 e 13 anos.

O Tribunal de Vila Nova de Gaia deu como provado que os rapazes eram amigos, que brincavam em casa uns dos outros, e que, no Verão de 2013, Pedro e João “tiveram contactos físicos íntimos” com André. Decidiu, no entanto, não aplicar qualquer medida tutelar educativa.

Pedro e João negaram tudo, como é comum. A perícia física não serve de prova — volvidas 72 horas não há vestígios. Mesmo afirmando que a avaliação psicológica confere credibilidade ao relato de André, a juíza considera que a sua idade “dificulta a compreensão real dos factos”.

A magistrada não sentiu convicção para condenar. Apreciou os relatórios feitos pelos peritos e as declarações prestadas durante o julgamento. Viu “contradição, hesitação, versão pouco convincente” e, “acima de tudo, omissão de vários factos e pormenores constantes da acusação”.

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O acórdão, datado de 22 de Janeiro, suscitou grande indignação no seio da Associação Projecto Criar, que presta serviços de natureza jurídica e clínica a mulheres e a crianças vítimas de crime. Dia 30 enviou por fax o recurso para a Tribunal da Relação do Porto em nome de André. Quer que o processo baixe à 1.º instância para que a juíza possa explicar o que entende por “contactos físicos íntimos”.

É como se tudo se resumisse a uma brincadeira de crianças, diz Leonor Valente Monteiro, vice-presidente da Criar. O tribunal considerou que os rapazes se encontravam “em igualdade face ao domínio do corpo e da sexualidade”, só que existe “uma profunda desigualdade”. Pedro e João já estavam na adolescência, já sentiam desejo, já tinham erecção. André não tinha ainda entrado na puberdade.

Na sua opinião, a expressão “contactos físicos íntimos” deve ser substituída por “actos sexuais de relevo”, tipificados como crime. Não houve contacto sexual entre pessoas livres, que mantêm uma relação de igualdade e de respeito; houve violência sexual contra uma criança de oito anos, salienta a advogada.

“Acho que esta foi a pior sentença que eu li até hoje”, disse Ricardo Barroso, professor auxiliar da Universidade de Trás-os-Montes. “Há um relatório de avaliação psicológica que atesta a credibilidade da vítima. O rapaz foi ouvido muito tempo depois e numa intimidatória sala de audiência. 

“Importará sempre aferir a credibilidade do testemunho da vítima mas estabelecer como princípio que a criança não tem capacidade ou não tem credibilidade para depor verdadeiramente sobre os factos, como aconteceu [neste caso], é colocar em causa o direito da criança à sua própria defesa”, dita o parecer integrado no recurso, a que o PÚBLICO teve acesso.

Às vezes, as crianças estão tão cansadas de repetir a história que chegam ao tribunal e nem querem falar. “Ele estava cansado”, diz Leonor Valente Monteiro. “Tem um trauma enorme. Teve acompanhamento psicológico no início, mas não quis continuar. Queria esquecer e ali era obrigado a lembrar-se.”

Os psicólogos que o acompanharam recomendaram que fossem usadas as declarações prestadas na apresentação da queixa, em Agosto de 2013. A Procuradoria-Geral Distrital do Porto deu um parecer favorável, mas a juíza quis ouvi-lo em sala de audiência de julgamento. E fê-lo a 12 de Janeiro de 2015.

A Leonor Valente Monteiro, tudo isto soa “a violação dos direitos da criança praticados pelo tribunal”, que não reconheceu a André “os direitos que a lei processual penal concede às vítimas de crimes contra a autodeterminação sexual, não gravando em vídeo o primeiro depoimento”.

André respondeu a tudo o que lhe perguntaram. Descreveu as agressões de que teria sido alvo — sexo anal, sexo oral, masturbação. Disse ter medo que contassem tudo ao pai dele. Não se lembrava de lhe terem escrito a palavra gay no pulso. Nem compreendeu logo as perguntas sobre as vezes em que lhe terão ordenado que se masturbasse. Anormal seria ser de outro modo, diz a advogada. Seria sinal de que tinha estudado o discurso.

A experiência de Ricardo Barroso diz-lhe que a sociedade está mais atenta e que o sistema judicial está mais preparado para lidar com crimes sexuais. Os juízes parecem-lhe estar mais conscientes de que os crimes desta natureza representam para vítimas e agressores. Quando a justiça não se faz, “não é só a vítima que não vê o seu dano reparado. É o agressor que não recebe um sinal, que não é educado para o direito”. Quando se olha para crimes sexuais praticados por menores, “a maior parte das vezes o que se vê são comportamentos exploratórios, mas abre-se um precedente para o uso da força, da manipulação do outro e isso tem de ser trabalhado”, remata.

Nota: os nomes dos menores utilizados neste artigo são fictícios.

Excerto do depoimento de rapaz de 10 anos sobre os abusos que diz ter sofrido aos oito

Procurador: E isso aconteceu em que sítios?
André: Hum… Em casa do Pedro, em casa do Ricardo, em minha casa e… monte.
Procurador: A que é que chamas monte?
André: É à beira de uma vidraria, onde fazem vidros. Tem lá, tem terra… e tem que se por lá.
Procurador: E é um sítio deserto ou tem de se ir por lá?
André: A gente não tem, é por um caminho. [...]
Procurador: Quando ias para ali a certa altura já sabias que era para te fazerem isso?
André: Sim, mas…
Procurador: E tinhas medo deles? Medo de que te batessem ou que fossem contar ao teu pai?
André: Porque também faziam num tanque. Onde tinham dois tanques, eles também faziam lá. E um tirou-me um vídeo no telemóvel. […] Quando eu dizia que não, eles diziam que o rapaz que tirou o vídeo ia mostrar ao meu pai e à minha mãe. Era isso que eu tava com medo de sair de lá. [...]
Procurador: Nunca viram filmes pornográficos os três?
André: Eu não sei se o meu irmão via, mas eu…
Procurador: Não, isso só interessa para aqui porque eles falaram. Tu, o João e o Pedro nunca viram juntos?
André: Nós? Sim. Eles amostraram-me [sic] mas eu não sabia nada sobre isso.
Procurador: Eles mostraram isso em casa de quem?
André: Foi na minha porque eu tenho dois computadores e eles lembraram...
Procurador: E depois disso, eles aproveitavam aquilo para ir fazer depois, era?
André: Sim. Acho que o João viu isso no computador e depois também queria fazer.
Procurador: Olha, e eles chamavam-te gay?
André: Sim.
Procurador: E escreveram-te isso no pulso?
André: No pulso?
Procurador: No braço.
André: Não.
Procurador: Isso não é verdade?
André: Não.
Procurador: Não escreveste com um marcador no pulso?
André: Eu?
Procurador: Sim, tu.
André: Já não me lembro.
Procurador: Eles falavam naquela personagem da televisão chamada Castelo Branco?
André: Sim, para me sentar à Castelo Branco. […]
Procurador: Quando finalmente decidiste apresentar queixa, porque é que foi?
André: Disse tudo à minha mãe.
Procurador: E porque é que naquele dia tu resolveste apresentar queixa? Tu disseste que tinhas medo que mostrassem o vídeo ao teu pai.
André: Sim, mas depois já estava… eles estavam sempre a ameaçar também. Tinha sempre medo. Depois comecei a ficar farto e enervei-me e fui dizer à minha mãe.

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