O país político em terra de ninguém

As actuais sondagens, longe da ida às urnas, não são definitivas. António Costa parte como favorito, mas a maioria absoluta não passa de miragem. Passos Coelho ainda pode ter hipóteses, se gerir bem alguns indicadores macro que são favoráveis ao Governo

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A nove meses das eleições e perante as incertezas europeias motivadas pela vitória do Syriza na Grécia, politólogos, economistas e responsáveis do marketing político referem ao PÚBLICO que Portugal se encontra numa peculiar situação. O Governo dá sinais evidentes de cansaço, multiplicam-se os episódios de falta de coordenação, os casos que põem em causa a sua capacidade de gestão e credibilidade. A oposição predestinada para a vitória, os socialistas de António Costa, ainda não arrancou nas sondagens nem nas propostas. Neste Inverno, o país político está em tempo de espera. Numa espécie de terra de ninguém.

“O PS escapou incólume da quase bancarrota”, constata António Nogueira Leite, catedrático de Economia e Finanças da Universidade Nova: “Ficar-me-ia mal achar que a maioria dos portugueses pensa que António Costa tem melhores condições para os governar.” Nogueira Leite não esconde ter cartão laranja. “Sou militante não praticante do PSD, ou seja, não vou à missa, estou dispensado de falar com os bispos e padres, o que dá um descanso impagável”, ironiza.

Feita a declaração de interesses, o antigo presidente do Conselho de Administração da Caixa Banco de Investimento, do grupo da CGD [Caixa Geral de Depósitos], encara o futuro imediato. “Há tanta incerteza nos planos nacional e internacional, que as coisas se vão decidir mais em cima [das eleições]”, avança. Desta realidade são conhecedores os dois principais protagonistas da próxima ida às urnas, Pedro Passos Coelho e António Costa: “O primeiro-ministro tem consciência disso, Costa também, pelo que estamos, neste momento, em terra de ninguém.”

Ana Rita Ferreira, professora de Ciência Política da Universidade da Beira Interior e do Instituto de Políticas Públicas, define a situação como “um momento político morto”. Mas que não é isento de dúvidas. As incertezas são comungadas por Rui Oliveira e Costa, responsável da Eurosondagem: “a situação europeia suscita dúvidas, houve o resultado das eleições gregas, há o não cumprimento pela França do Tratado Orçamental, depois as eleições na Suécia, Dinamarca, Reino Unido, ainda em Espanha, que podem aumentar o fosso entre o Norte e o Sul da Europa”. A preocupação é simples. “A vitória do Syriza a Sul não levará a um aumento da extrema-direita a Norte?”, questiona Oliveira e Costa: “A Europa nunca viveu uma situação deste tipo o que, num país periférico como Portugal, tem uma grande influência.”

As incertezas conduzem a um compasso de espera que, para André Freire, justifica de algum modo a discrição do challenger socialista. “O mais gritante é o silêncio sobre a dívida, embora o resultado das eleições na Grécia tenha posto em cima da mesa a proposta de um conferência sobre a dívida que agrada a António Costa”, recorda a investigador e politólogo. “Sabemos lá o que vai acontecer. Está tudo a mudar, António Costa tem mais que tempo para montar a campanha”, destaca Pedro Bidarra, consultor, antigo vice-presidente da BBDO, e com assessorias políticas várias, de Manuel Pinho a Manuel Monteiro, de Durão Barroso a José Sá Fernandes, de Cavaco Silva a José Pacheco Pereira.

A volatilidade internacional e evolução da cena europeia também marcam os tempos do Governo. A compra da dívida europeia pelo Banco Central Europeu (BCE) terá influência na estratégia eleitoral do actual Governo? “A compra de dívida não terá um grande impacto na economia portuguesa neste ano pelo que não será um trunfo eleitoral”, descarta Paulo Trigo Pereira, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão.

“As medidas do BCE asseguram alisar os compromissos futuros da nossa dívida a partir de 2016”, corrobora Nogueira Leite. Nos corredores da maioria, o segundo semestre é apontado como o tempo de uma descida do desemprego. “Não vai haver novidades no desemprego que sejam decisivas para as eleições, quer para um lado quer para o outro”, contrapõe o catedrático da Universidade Nova. “Parece-me que a previsão mais cautelosa é a relativa manutenção da taxa de desemprego ao longo do ano, isto se não forem usados alguns expedientes “contabilísticos” adicionais, como os acréscimos de estágios a cargo do Instituto de Emprego e Formação Profissional”, adverte Trigo Pereira.

“A recuperação económica, a acontecer, não terá grande impacto na vida das pessoas, serão sempre sinais ténues”, sublinha André Freire: “Em termos de resultados, a situação está longe de ser famosa”. Aponta os pontos fracos. “Devemos mais dinheiro que em 2011, é verdade que o défice está mais controlado, mas os bons activos empresariais já foram vendidos e os serviços públicos estão a rebentar pelas costuras”, enumera. Saúde, Educação e Justiça são, para o politólogo, os sectores críticos.

“A economia pode melhorar um bocadinho, mas há o risco do impacto da crise angolana nas empresas portuguesas, e mantemos os problemas estruturais da nossa economia, como empresas muito endividadas, grande falta de capital produtivo”, analisa Nogueira Leite: “Apesar dos bancos estarem carregados de liquidez têm todos problemas de capital e de rentabilidade que não lhes permitem grandes injecções na economia.”

Ou seja, não há um quadro idílico eleitoralmente redentor. “Superámos um conjunto enorme de dificuldades, houve soluções positivas, algumas do Governo outras pela evolução das circunstâncias”, pondera o antigo gestor da Caixa Banco de Investimento. Um dos lados positivos que aponta é a queda do império BES: “Vai ser positiva para o futuro da economia portuguesa, embora a solução seja de risco porque não é indiferente para as empresas se vai haver, ou não, continuidade de uma banca de relação, o que é um tema que os burocratas e políticos desconhecem porque não tiveram de pagar salários e impostos no fim do mês.” E explica. “Foi [a queda do BES] o fim de uma teia de matriz pouco ocidental”, salienta. No entanto, é peremptório: “Se, depois de comprado, o BES não dá crédito às empresas portuguesas e for, apenas, um centro de poupanças de portugueses, é mau para o país mas não influi nas eleições.”

Assim, não são previsíveis milagres no segundo semestre. “Mas os portugueses são sensíveis aos números macro, mesmo que não reflictam a sua vida real”, admite Ana Rita Ferreira. “Se o Governo mostrar crescimento económico, embora em consequência dos chumbos do Tribunal Constitucional, menos desemprego, em boa parte pela emigração, vai haver um equilíbrio entre a situação real e os números macro e pode passar a mensagem do trabalho feito”, refere.

A professora de Ciência Política da Universidade da Beira Interior concede, pois, alguma margem ao Executivo de Passos Coelho: “Acredito que o Governo tem terreno para cavalgar, mas não sei se será suficiente para mudar as tendências, embora os portugueses sejam sensíveis ao impacto dos grandes números.”

Pedro Bidarra também não antecipa resultados. “A maior parte dos que votam não querem revoluções, querem paz, querem voltar à vidinha que perderam nos três últimos anos”, estima o consultor: “Sabemos que esses tempos não voltam na íntegra, mas há esse desejo e é nesse sentimento que a direita se pode alavancar.” E exemplifica o discurso. “Dizem, sucintamente, que a trapalhada que Sócrates nos deixou está resolvida, que vamos voltar à tal vidinha, esse sentimento existe e é credível”, antevê
 
A esquerda baixar impostos?
Não é por acaso que ministros, dirigentes e deputados da maioria repetem, à saciedade. alguns destes resultados . “A maioria pode dizer que, de três países intervencionados, dois saíram e Portugal foi um deles, que houve vícios de anteriores governos a que este Executivo não sucumbiu, como o denominado voluntarismo empresarial que acabou por ser uma factura para o contribuinte”, recorda Nogueira Leite.

Será isto suficiente para convencer os eleitores? “Em Portugal, a classe média esteve a pagar a capitalistas sem dinheiro, vivemos uma espécie de capitalismo tropical com transferência de capital da classe média para os favoritos dos sucessivos governos”, destaca o catedrático da Universidade Nova: “O ajustamento orçamental foi mais à custa dos contribuintes do que da despesa, embora a actual ministra das Finanças tenha conseguido reduzi-la.”

O “enorme aumento” de impostos apresentado sem subterfúgios, pelo ex-ministro Vítor Gaspar na apresentação do Orçamento de Estado de 2013, foi traduzido no aprofundamento dos cortes das despesas sociais.  André Freire enumera outra consequência: a pauperização das classes médias, do funcionalismo. “As carreiras da Função Pública foram substituídas por contratos à hora, como os das mulheres-a-dias”, exemplifica.

As sondagens traduzem o desgaste, mesmo a impopularidade, de tais medidas. Nos últimos nove meses, o PS esteve sempre acima das preferências eleitorais do PSD. Mesmo nos tempos conturbados das eleições para a liderança socialista entre António José Seguro e António Costa, com a imagem de divisão que tal inevitavelmente acarretava, a linha socialista nos inquéritos de opinião sempre esteve acima da linha laranja. Um facto que não é desprezado na análise do PSD. E não permite entusiasmo.

No estado-maior adversário também há nervosismo. Nas últimas sondagens, António Costa não descola. O secretário-geral socialista está, ainda, em trânsito progressivo da presidência da Câmara de Lisboa para candidato a primeiro-ministro. “António Costa não podia passar um ano em campanha eleitoral sem sair desgastado, é ingénua a ideia de que após a eleição do novo secretário-geral o PS rebentaria nas sondagens”, afirma Ana Rita Ferreira. Mas houve, reconhece, também mérito do Governo: “Tem sabido apresentar os seus trunfos.”

Oliveira e Costa relativiza a importância dos actuais inquéritos de opinião. “As sondagens só são mais fidedignas junto do acto eleitoral e, se finalmente houver coligação à direita, o quadro é outro”, adverte. André Freire junta outra peça: “Tudo se deve à distância das eleições e ao facto de António Costa não estar no Parlamento”.

Contudo, não tem sido brilhante, para a professora da Universidade da Beira Interior, a oposição do PS ao Governo. “Não soube explorar o caso BES, sabemos mais do trabalho da deputada Mariana Mortágua do Bloco de Esquerda do que dos socialistas”, afirma Enumera, ainda, duas incógnitas. A evolução grega e a gestão do caso Sócrates.

“O PS tem-se agora dedicado a fazer peregrinações a Évora, é o que tem estado a produzir”, critica Pedro Bidarra: “O PS tem de começar a pensar noutra coisa, tenho imenso respeito pela experiência mas ver todos os dias os que já deram o seu contributo visual e comunicacional não mobiliza.” Bidarra assinala outro caso de êxito de oposição: “O que fez o deputado Paulo Sá, do PCP, com as peças de Lego [no caso BES], ou seja, [mostrar o] que a todos nos dói com o confisco dos impostos.”

Maio será o mês do arranque do dirigente socialista, o timing escolhido para avançar e pôr a funcionar a máquina partidária. “António Costa deve avançar quando tiver uma proposta credível que seja simultaneamente uma alternativa à política do actual Governo e às ilusões vendidas pela esquerda radical”, pondera Paulo Trigo Pereira: “Acho que mais vale apresentar-se em Maio com propostas consolidadas do que antes com ideias pouco fundamentadas.”

A frente europeia pós-vitória do Syriza é uma condicionante. “As novas linhas orientadoras da Europa são há muito esperadas por Costa”, argumenta Rita Ferreira. “Com o avançar do calendário tem de “sair da toca”, tem de ser mais explícito”, antevê André Freire. Mas o investigador faz ressalvas. “Não comungo da ideia de que António Costa não disse nada, embora não haja compromissos específicos, mas a menor disponibilidade para aceitar o que a direita quer não é em vão”, relembra. O investigador e politólogo destaca alguns aspectos: “Revaloriza o valor do trabalho, dos serviços públicos, da Educação e Ciência, o acordo com os sindicatos e a ideia de que o arco da governação não é uma vaca sagrada.”

Nenhum dos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO admite um cenário de maioria absoluta dos socialistas. “António Costa tem capacidade de fazer alianças com pessoas sem poder que se contentam com sinecuras, o que revela grande capacidade táctica e inviabiliza o crescimento da extrema-esquerda”, diz Nogueira Leite. E sentencia: “Não vamos ter um Syriza em Portugal.”

A professora da Universidade da Beira Interior concorda. “O PS tem mais resiliência que o PASOC [Partido Socialista Pan Helénico] e os espanhóis do PSOE. O Bloco de Esquerda decidiu suicidar-se quando podia ser o desbloqueador de coligações à esquerda, e o Tempo de Avançar existe para ser parceiro à esquerda do PS”, analisa. Ana Rita Ferreira concluiu: “António Costa corre o risco de governar com um governo minoritário, mas o centro político vai sempre atrás de dinâmicas de vitória, e Costa é visto como um homem moderado, não de rupturas, entra bem no centro.”

André Freire também não encontra mimetismo grego em Portugal. “As mudanças políticas na Grécia reflectem alterações do status quo do sistema político, o que não se detecta entre nós, o sistema político português parece cristalizado”, diz. E alerta: “Por enquanto não se vê as pessoas interessadas em maiorias absolutas.” É essa, também, a perspectiva de Rui Oliveira e Costa. “Em situação normal, a vitória de António Costa está garantida, embora por uma margem não grande”, antevê. Ou seja, sem sombra de maioria absoluta.

Pedro Bidarra considera que o PS tem um líder com experiência, mas lança um desafio: “Pode unir os anseios de quem não se revê no Governo, dos funcionários públicos, desempregados, gente do centrão, mas o “cavalo de batalha” devia ser baixar os impostos, devia ser esta a narrativa da esquerda pois vivemos num Estado fiscal/policial.”

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