O jogo em que a voz é o guia

Mayday! Deep Space, um jogo com uma escrita capaz que sustenta a tentativa de inovar a jogabilidade.

Foto

De súbito o reverberar da solidão, outra que não a minha, a de alguém preso na nave USS Appaloosa. Perto do extremo da sua existência pede ajuda que pagará com a gratidão desenfreada de quem tem a certeza estar perto do fim. Segreda que acabou de acordar e não sabe como chegou ali, àquele lugar escuro e demasiado justo aos sentidos: o alívio que lhe resta é ouvir a voz do jogador através do rádio.

E tudo o que temos à nossa disposição em Mayday! Deep Space é precisamente isso: um rádio. Disponível para iPhone e iPad, o ecrã do dispositivo móvel de eleição é preenchido numa disposição simples. Dominado por um círculo que nos permite ver a planta da nave em tempo real, é ainda composto por um botão principal e um visor rectangular onde duas linhas de texto deslizam horizontalmente como a informação mostrada no oráculo de um canal noticioso.

Foto

Como se estivéssemos a jogar num osciloscópio de grande proporção e definição, vemos onde está o sobrevivente (peão de cor azul no mapa), onde estão as criaturas (peões de cor encarnada) que ameaçam a sua sobrevivência e onde fica o local até onde temos de o guiar (convenientemente assinalado a amarelo). Ou seja, somos o seu olhar num posto digital privilegiado de onde vamos improvisando e gizando um caminho de emergência; onde vamos antecipando o seu futuro próximo com o deslize do dedo pelo ecrã, perscrutando o caminho que ele ainda não sabe ter que percorrer.

A mecânica que junta tudo isto e lhe dá sentido é a maneira como interagimos com o jogo. Não controlamos o personagem, não pressionamos uma tecla para abrir uma porta, enfim, não somos receptáculos de uma jogabilidade convencional. Em Deep Space pressionamos o botão em destaque no seu interface e usamos a nossa voz para ditarmos comandos, vontades de orientação a quem está na nave.

Engenhosamente, o texto deslizante no visor previamente mencionado é a lista com as palavras de direcção que temos à disposição, esquivando-se assim a um esquecimento precoce do jogador. Vira à esquerda, vira à direita, pára, corre, vira-te, e outras derivações que elevam a composição da lista a mais de uma dezena.

Ainda que o conceito seja interessante e refrescante, existem momentos - especialmente num capítulo quando nos restam três minutos de oxigénio - em que o jogo parece ter vontade própria e mesmo que o jogador repita até à exaustão o mesmo comando, certificando-se que está a usar o inglês mais próximo do perfeito possível, o personagem insiste em continuar em frente quando explicitamente ordenamos uma paragem ou viragem à esquerda ou direita.

A produtora engendrou um plano secundário para quando isto acontece: é possível deslizar um painel e assumir um esquema de controlo mais tradicional, mas tal não é prático e sabota um dos principais alicerces de uma experiência diferente, de uma interacção distinta que tenta demarcar Deep Space dos demais jogos publicados semanalmente num mercado fervilhante.

Quando o jogo respeita as nossas ordens há um rejubilo por estarmos a experimentar algo novo; contudo, quando corre mal existe um efeito secundário nefasto: muitos, talvez a maioria, perderão a compostura, acabando exaltados a gritar os comandos junto do microfone do dispositivo - algo capaz de assustar quem está em casa e muito mais quem está na partilha de um espaço público.

Tal não deve acontecer. Deep Space é peremptório a aconselhar quem o experimenta a encontrar um lugar calmo. Não só pelo silêncio necessário para o jogo reconhecer a voz do jogador, mas também porque estamos perante uma obra patrocinada por uma tensão assinalável. Não é apenas necessário um lugar calmo, é também necessário uma morada de ocasião em que esteja apenas o jogador e jogo, sem interferências ou filtros.

Como a experiência é veiculada através do rádio nunca chegamos a ter o aspecto visual da nave definido. Como a imaginação de alguém que está neste momento empenhado no capítulo de um livro, também aqui é a imaginação do jogador que une os pontos fixados pela escrita de Daniel H. Wilson. Tudo o que tenho à disposição é a descrição feita pelo personagem e alguns apontamentos sonoros: as luzes da nave a estourar, as pegadas de sangue por toda a parte, os sinais de emergência acesos, criaturas de olhos pretos, alguém que enlouqueceu e comeu os próprios lábios, uma marca no braço, o tema da clonagem: pequenas pedrinhas deixadas pelo autor para que eu consiga ver uma praia de olhos fechados. A “minha” Appaloosa é certamente diferente da vossa.

A escrita é complementada por uma banda sonora que merece ser reconhecida. Mesmo sem ser brilhante, ajuda a aumentar a tensão com o seu ritmo crescendo. Ainda vagueando pelos parâmetros técnicos, a vocalização de maior destaque é da competência de Osric Chau, com o actor de Sobrenatural a ser auxiliado por Bitsie Tulloch e Claire Coffee. Chau consegue instaurar um sentimento de urgência e compaixão. Para continuarmos investidos na sua salvação temos de crer no que nos chega através das colunas, querer salvar quem não passa de um personagem num videojogo. Pede-me: “Por favor não desligues”. Não desliguei.

Terminar Deep Space demora pouco mais de uma hora, mas existem vários finais diferentes à laia de várias escolhas que temos que tomar durante a campanha. Tal como todos os recentes títulos da Telltale Games, também aqui existe um peso inerente a cada opção. Todavia, ecoou mais perto da minha indecisão a ramificação da história onde tive que optar por vestir ou não o fato com a reserva de oxigénio de “outra” personagem. Sem revelar a espinha dorsal da narrativa, é uma luta demasiado rente ao osso para ser tomada em alguns segundos.

Jogo de várias falências e valências, Mayday! Deep Space tenta algo diferente. A história no seu cerne é capaz de suportar o interesse, mesmo nos interregnos do reconhecimento vocal. Não fui protagonista, apenas guia de um turismo "dantesco", onde a sobrevivência de quem guiava acabou por me guiar.

Pode ler mais críticas em VideoGamer Portugal

Sugerir correcção
Comentar