Um quotidiano de tortura e medo, escrito a partir de uma cela de Guantánamo

Mohamedou Ould Slahi foi detido na Mauritânia, em Novembro de 2001, e nunca mais foi libertado. Em 2005, escreveu um diário na prisão norte-americana de Cuba que só agora os seus advogados conseguiram ver publicado.

Um dos irmãos de Mohamedou, Yahdih, e a sua advogada Nancy Hollander, com o livro da mão
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Um dos irmãos de Mohamedou, Yahdih, e a sua advogada Nancy Hollander, com o livro da mão Ben Stansall/AFP
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Ainda há 122 detidos na prisão de Guantánamo, que o Presidente Barack Obama prometeu encerrar quando foi eleito MLADEN ANTONOV/AFP

Foram precisos sete anos para que os advogados de Mohamedou Ould Slahi conseguissem autorização para divulgar o diário que o mauritano escreveu entre o Verão e o Outono de 2005 em Guantánamo – acaba de ser publicado e é a primeira vez que isto acontece com um livro de um detido que permanece na prisão aberta pelos Estados Unidos depois do 11 de Setembro. Slahi ainda não sabe quando sairá da sua cela de Cuba: apesar de um juiz federal norte-americano ter ordenado a sua libertação em Março de 2010, a Administração recorreu e o processo arrasta-se.

Slahi foi detido na Mauritânia, em Novembro de 2001. Já tinha sido interrogado no passado – quando tinha 20 anos, em 1991, partiu para o Afeganistão e combateu ao lado do que era já a Al-Qaeda, que acabara de derrotar os soviéticos. Passou por lá duas vezes e desistiu, diz que mal disparou uma arma.

Entretanto, vivia na Alemanha, onde chegou em 1988, com uma bolsa de estudo. Licenciado em Engenharia, tinha trabalho e casou. Passou pelo Canadá e, em 2000, regressou à Mauritânia, para perto da mãe (o pai morreu quando tinha 13 anos) e dos onze irmãos. Depois de Nova Iorque e Washington, diz que foi por vontade própria à polícia e que nada o ligava aos atentados. Nunca mais voltou. Uma semana depois, chegava à Jordânia, já nas mãos da CIA. Em Julho no ano seguinte, foi transferido para Bagram, no Afeganistão; um mês depois, aterrava em Guantánamo e passava a ser o detido 760.<_o3a_p>

No manuscrito, editado com 2500 cortes visíveis, as partes censuradas (nomes, expressões, partes de frases ou páginas inteiras), Slahi lembra como foi completamente despido e obrigado a entrar num avião. “Um membro da equipa pôs-me uma fralda. Foi nessa altura que eu tive a certeza que o avião ia para os EUA. Então comecei a convencer-me de que tudo ia ficar bem.”<_o3a_p>

Não foi o que aconteceu. O diário, escrito em inglês, descreve espancamentos, humilhações, ameaças de morte contra ele e a sua mãe, sessões de tortura permanentes. Segundo a investigação do Comité das Forças Armadas do Senado, divulgada em Dezembro, o regime de interrogatório preparado para Slahi em 2003 incluía privação de sono, luzes de flash ou ameaças com cães. <_o3a_p>

São desse período os interrogatórios de 20 horas, com pés e mãos acorrentados, em celas geladas. “Levanta-te, cabrão’, gritaram os dois, quase ao mesmo tempo. Voltaram a fazer-me as mesmas perguntas sem parar depois de me obrigaram a permanecer de pé, mas não valia a pena. Eu disse-lhes milhões de vezes: ‘Sempre que me torturarem não vou dizer nem uma palavra’”, escreve Slahi. <_o3a_p>

Piorou, depois da aprovação, pelo então secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, de um novo plano com “com técnicas de interrogatório adicionais”. Um dia, em Agosto de 2003, Slahi passou horas a ser espancado por diferentes grupos de interrogadores, acorrentado e com um saco na cabeça. “Pensei que ia ser executado”, escreve. “Um deles bateu-me com tanta força que a minha respiração quase parou e eu estava a sufocar”, descreve.<_o3a_p>

Arrastado para um barco, foi obrigado a beber água do mar e espancado. Transportado para novo barco, puseram-lhe outro saco na cabeça e uma espécie de blusão. Slahi ouvia vozes em inglês e árabe. Alguém “estava a fornecer a equipa árabe com materiais de tortura” para as horas seguintes. “A ordem era a seguinte: eles enchiam o ar entre as minhas roupas com cubos de gelo do pescoço até aos tornozelos e, sempre que o gelo derretia, punham novos cubos. De vez em quando, um dos guardas batia-me, quase sempre na cara.”

Mentiras e alucinações
A partir de certa altura, em vez de dizer a verdade, Slahi começou a responder “sim” a tudo o que lhe era perguntado, admitindo tudo, incluindo um plano de atentado contra a torre CN de Toronto. “Comecei a alucinar e a ouvir vozes. Ouvi a minha família numa conversa normal, leituras do Corão. Ouvi música do meu país. Depois os guardas usavam estas alucinações e começaram a inventar vozes que me chegavam pelos canos, encorajando-me a tentar fugir.” <_o3a_p>

Slahi, hoje com 44 anos, nunca foi acusado e os próprios procuradores de Guantánamo consideraram que as suas confissões, obtidas sob tortura, não tinham valor. O jornal britânico Guardian, que tem divulgado excertos do Diário de Guantánamo, publicado esta semana em vários países, nota como Slahi nunca parece ter perdido completamente a noção da realidade e chega a conseguir encontrar ironia na sua situação. <_o3a_p>

Numa audiência, já depois de ter acabado o diário, perguntam-lhe para onde gostaria de ir. “Canadá”, responde. No fim, o presidente do painel explica-lhe que a sua recomendação será transmitida ao “responsável civil designado”. “Não estou muito chateado, mas é extraordinário que a minha vida vá ficar nas mãos de alguém chamado ‘civil designado’”, responde. O Guardian nota que há uma palavra ausente do diário – desespero –, mas conta 28 vezes a palavra “medo” e 23 “assustado” ou “aterrorizado”.<_o3a_p>

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