Sobrevivência

O Último dos Injustos é um fascinante jogo de pingue-pongue entre um entrevistador (Lanzmann) e um homem (Murmelstein) perfeitamente consciente das “zonas de sombra” do seu percurso.

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Como quase todos os filmes de Claude Lanzmann, O Último dos Injustos é um descendente de Shoah, o seu monumental trabalho sobre o Holocausto, e sobre as memórias do Holocausto, estreado em 1985.

Mas se nalguns filmes que assinou depois de 1985 Lanzmann voltou a segmentos específicos de Shoah, em O Último dos Injustos o material dado a ver, e sobre o qual o filme se constrói, ficou inédito. Trata-se, essencialmente, do registo filmado de várias sessões de conversa entre Lanzmann e a extraordinária personagem de Benjamin Murmelstein, que fora o derradeiro “Ancião dos Judeus” do ghetto-modelo de Theresienstadt. As conversas tiveram lugar em 1975, quando, no início da preparação do que viria a ser Shoah, Lanzmann localizou Murmelstein em Roma e foi ter com ele. Como Lanzmann assinalou por altura das primeiras apresentações de O Último dos Injustos, Murmelstein afigurou-se-lhe um indivíduo de tal modo colossal que acabou por não incluir nenhum do material com ele em Shoah, pensando um dia fazer com Murmelstein o filme que ele merecia, que era, Lanzmann dixit, “um filme só para ele.”

O Último dos Injustos

é então esse filme. É o retrato dum homem com uma história extraordinária, é um documento de história oral, é uma investigação sobre alguns aspectos particulares do Holocausto, e é, não o negligenciemos, um fascinante jogo de pingue-pongue entre um entrevistador (Lanzmann) e um homem (Murmelstein) perfeitamente consciente das “zonas de sombra” do seu percurso. Figura ambígua, que houve (Gerhard Scholem, por exemplo) quem defendesse que devia ter sido julgado e condenado, Murmelstein, apesar de bastante “apertado” por Lanzmann, acaba por ser como que “absolvido” por ele: o final do filme, no que é um pormenor raríssimo em toda a obra de Lanzmann, mostra os dois num último passeio por ruínas romanas, e a câmara fica a vê-los a afastarem-se, com Lanzmann a passar o braço pelo ombro de Murmelstein. Não fica nenhuma ambiguidade sobre a admiração do realizador pela sua personagem.

Em relação aos procedimentos habituais de Lanzmann — tão crucialmente expostos em ShoahO Último dos Injustos introduz algumas variações relevantes. Aquela opção radical de incluir quaisquer imagens de época foi abandonada, e neste filme encontra-se mesmo um pequeno documento, feito pelos próprios nazis, que mostra o ghetto de Theresienstadt numa absurda (sinistra e absurda) manobra de propaganda, que pretendia dar a ver como o ghetto era de facto “modelo” e todos ali tinham uma vida agradabilíssima. Outro aspecto importante é o facto de Lanzmann se pôr, a ele próprio, “em cena”, em imagens contemporâneas (Lanzmann já com oitenta e muitos anos) que criam um diálogo curioso com as imagens de 1975 onde Lanzmann aparece como homem jovem, sugerindo que O Último dos Injustos comporta também uma dimensão autobiográfica, como se o realizador reflectisse também sobre a sua vida e obra. Mas essas cenas contemporâneas, onde Lanzmann faz um pouco de tudo (cicerone na visita à actual cidade de Terezin ou às sinagogas de Viena; reconstituição quase “teatral” de acontecimentos sucedidos no ghetto), também fazem uma espécie de ponte, da “memória histórica” à “memória material”, como que salientando que o Holocausto, apesar da crescente distância temporal, não é uma abstracção de livros de História mas, pelo contrário, uma presença. E nesse sentido, certos momentos, como a demorada cena numa sinagoga vienense, dão-se a ver como um testemunho de sobrevivência cultural: eis aqui, ainda, a cultura judaica que os nazis quiseram destruir. Contando uma história de morte, O Último dos Injustos celebra, no fim de contas, a sobrevivência e a vida.

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