Governo estuda novo debate para a dívida tarifária

A dívida tarifária da energia eléctrica, que no próximo ano atingirá um valor recorde de cinco mil milhões de euros, já gerou várias discussões acesas, mas falta a da responsabilização política. A resposta não é fácil.

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Este “buraco” resulta de uma série de decisões políticas que começaram em 2004 Daniel Rocha

Quem é responsável pela criação da dívida tarifária do sector eléctrico, um buraco que vai chegar ao recorde de cinco mil milhões de euros em 2015 e que terá de ser liquidado em apenas cinco anos pelos consumidores, como manda a troika? A resposta é menos imediata do que parece. O secretário de Estado da Energia, Artur Trindade, admite que o Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia está a preparar dados para levar o assunto ao Parlamento, para um dos próximos debates, por “ter interesse político para o Governo”, mas não tem uma solução fácil para este exercício que “é explicar os diferentes custos gerados em termos de compromisso político”, diz ao PÚBLICO.

A dívida era de 819,7 milhões de euros em 2007, atingiu em 2014 os 4,6 mil milhões e no ano que vem subirá para cinco mil milhões, já depois de amortizados 1120,4 milhões e pagos 213,2 milhões em juros, isto apesar do abrandamento do crescimento dos custos. O buraco é o resultado complexo de uma série de decisões políticas com decretos-lei, negociações, contratos e autorizações que começaram em 2004 e prolongaram-se sobretudo até 2009, cujos custos foram gradualmente adicionados pelos governos à factura mensal de luz sem terem a ver com o gasto efectivo de energia de cada consumidor.

Estes custos de ordem política são conhecidos como custos de interesse económico geral (CIEG) e passaram a crescer como dívida a partir do momento em que o Governo de Sócrates, através do seu ministro da Economia, decidiu que a respectiva factura passaria a ser paga em diferido, numa espécie de prestações com juros, de maneira a acomodar crescentes subsídios e rendas concedidos às empresas do sector eléctrico.

A rapidez com que dívida tarifária cresceu – em 2015, será cinco vezes maior do que oito anos antes, apesar do abrandamento esperado – suscitou uma discussão que se centrou especialmente em críticas às renováveis e às compensações pagas à EDP para as suas barragens, conhecidas por CMEC (Contratos de Manutenção do Equilíbrio Contratual). O que ainda não se discutiu foi a responsabilidade política e as lições a tirar pela criação deste buraco, mas promete vir a seguir.

Os tipos de custos que estão por detrás da dívida tarifária são onze – nos quais se incluem as rendas para as centrais térmicas e para as renováveis, passando pela convergência tarifária com as regiões autónomas – mas depois algumas delas desdobram-se em várias decisões e momentos. E essa é a primeira dificuldade para encontrar politicamente os responsáveis.

“O exercício tem muitas soluções de pressupostos”, adianta o secretário de Estado. Um dos exemplos que dá é o dos CMEC. “Qual é a data que conta? A data da aprovação da lei, em 2004 [pelo Governo de Santana Lopes] ou 2007, quando foram assinados os acordos de cessação antecipada de vários contratos e a prorrogação do domínio público hídrico das barragens da EDP?”, questiona. Outro exemplo é os CAE-Contratos de Aquisição de Energia, que garantem remunerações a várias centrais térmicas. “Foram assinados em 1998, mas o sobrecusto é de 2006”. Nas tarifas garantidas pagas aos promotores eólicos, a dúvida repete-se.

“Um momento é a legislação, outro é o licenciamento. Há parques que obtiveram licenciamento ao abrigo da legislação de 2001, mas entraram em exploração em 2010”, refere. “É um exercício de transparência, mas com riscos, e pode ser enganador”, num país de alternância de governos PSD e PS, afirma Artur Trindade, acrescentando que, “consoante as decisões, calha mais num lado ou no outro”.

À troika, que verifica semestralmente se o compromisso português de pagar toda a dívida tarifária até 2020 está a ser cumprido, este assunto não interessa. “Mas pode interessar ao debate político interno”, defende o secretário de Estado. “Explicaria quem foram os decisores políticos que originaram estas questões com as quais lidamos hoje”, considera.

A dívida tarifária provocou também uma gestão complexa dos próprios CIEG, cuja responsabilidade é do Governo. Em alguns casos, faltam critérios claros sobre o modo como devem ser diferidos anualmente até à sua liquidação, porque nem todos os CIEG pesam o mesmo, nem afectam de forma igual todos os consumidores: uns pesam mais sobre os domésticos, outros sobre a indústria. Por outro lado, a imposição da troika de que a dívida tem de acabar até 2020 complicou ainda mais a sua gestão.

“Se diferir mais [a dívida da] produção em regime especial renovável vou beneficiar os consumidores em baixa tensão normal [domésticos]; se for os da cogeração, o benefício vai para os níveis de tensão maior [empresas]”, explica Artur Trindade, que recusa a ideia de que o exercício dependa do bom-senso do governante que ocupe a pasta em cada momento. “Tenho de fazer uma gestão equilibrada dos impactos, que dê alguma estabilidade tarifária aos consumidores”.

No labirinto que é hoje a gestão de dezenas de parcelas e subparcelas dos CIEG, a tutela da Energia publicou duas portarias nos últimos dois anos, que “melhoram procedimentos”. Permitem, por exemplo, que o parecer do Conselho Tarifário dá anualmente ao cálculo do Governo para os CIEG (introduzidos depois nas tarifas) passe a ser “tomado em boa conta” pelo Governo e a levar a uma eventual alteração de valores, caso “surja informação relevante com impacto”, entre a apresentação da proposta em Outubro e o anúncio da decisão em Dezembro.

O representante da DECO no Conselho Tarifário da ERSE, Vítor Machado, fala sobretudo numa “afinação”, já que as portarias não se destinam a “grandes mexidas”. Lembra também que este órgão que reúne os sectores da sociedade representativos do consumo de energia eléctrica já dava anualmente o seu parecer. Nessa afinação, sublinha, existe “uma porta aberta para reagir a eventuais considerações e erros e que possam alterar a decisão do Governo”. Para a entidade reguladora, a ERSE, esta metodologia traduz-se “num aumento da transparência do processo – que sempre foi uma decisão de política energética e não do regulador” e “num envolvimento de todos os stakeholders”, incluindo os representantes dos consumidores”.

Esta série tem o apoio da Caixa Geral de Depósitos

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