Um filme youtube que chora pela Síria

Com imagens captadas por anónimos e publicadas em plataforma de partilha de vídeos amadores, eis um longo poema sobre o horror e sobre os “desastres da guerra”

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Cinecartaz: Trailer do filme "Água Prateada"

Ossama Mohamed é um realizador sírio exilado em Paris desde 2011. Wiam Simav Bedirxan – “simav” significa “água prateada” – é uma professora da cidade de Homs que, quando a guerra civil síria chegou à sua cidade, compelida a documentar o sofrimento que testemunhava, entrou em contacto com Mohamed, pedindo-lhe conselhos sobre o que filmar e como filmar.

Desses contactos resultou esta colaboração mais extensa a que chamaram Água Prateada – um Auto-Retrato da Síria. As imagens captadas por Simav em Homs são integradas no filme, mas o essencial da estrutura foi encontrado por entre os milhares de imagens captadas por anónimos e publicadas no Youtube e outros locais de partilha de vídeos amadores.

Um “filme-youtube”, portanto, algo que astuciosamente não é dissimulado a partir de um pormenor simples na banda de som, a integração de “ruídos de computador”, cliques e afins, a sublinharem o facto de ser um filme feito ao computador, em frente à Internet, apenas possível pelos computadores e pela Internet. Não conta a história da guerra civil, ou pelo menos não conta apenas a história da guerra civil, antes construindo com, e sobre, as suas imagens, um longo poema –a voz “off” – e sobre o horror e sobre os “desastres da guerra”. É nesta perspectiva, quase “pictórica”, que as muitas imagens de atrocidades e cadáveres se aguentam sem exibicionismo ou sensacionalismo: assim recontextualizadas, jogadas umas contra às outras, convertem-se num longo lamento, um longo choro, que por isso se torna também num fortíssimo testemunho de um quotidiano drasticamente alterado, uma “normalidade” perdida entre ruínas e corpos estraçalhados.

O lamento não é por um lado do conflito nem por outro. O filme chora pela Síria, por todos os sírios, assim como acusa a Síria e todos os sírios – é “o funeral mais demorado de todo os tempos”, diz-se no filme. Contra o maniqueísmo – há pelo menos uma sequência em que se estabelece um paralelismo, visual e sonoro (as canções de uns e de outros) entre os leais a Bashar e o exército rebelde – Mohamed e Simav partem de um princípio salutar: não há assassinos “bons”, nem mortos “maus”. Entre dois cadáveres de campo opostos, não escolhem; vêm apenas morte e sofrimento. Sobre isto, desenha-se o tema da inocência definitivamente perdida, e talvez por isso uma figura recorrente – sobretudo nas imagens filmadas por Simav em Homs – sejam as crianças, as crianças mortas, as crianças entre ruínas, as crianças a visitarem os túmulos frescos dos pais. No momento mais surpreendente do filme, estas crianças já não são só sírias, são “todas as crianças”: imagens dum televisor onde passa o célebre combate de boxe de Luzes da Cidade (sempre Chaplin…) e em “off” o riso duns quantos miúdos, alguns deles estropiados.

Objecto bastante singular, a sua validade vai um pouco além da mera importância documental: trata-se de uma forma inteligente de introduzir, nesse material caótico produzido pela “urgência”, algum tipo de mediação e reflexão – inclusivamente sobre a natureza dessas imagens.

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