O cante ouve-se com o corpo, diante das vozes

Se no fado os registos discográficos abundam e são de fácil acesso, o cante alentejano, com uma vitalidade provada pelos mais de 150 grupos corais em actividade, existe sobretudo como celebração presencial de uma ligação à terra e às raízes.

Ao contrário do que acontece claramente com a outra música de raiz portuguesa a se ter candidatado (com sucesso) à classificação de Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o cante alentejano não tem uma sala de boas-vindas claramente demarcada.

Para o fado há todo um roteiro turístico fácil de seguir e uma ampla discografia disponível. Mas quem quiser ouvir este canto polifónico, a vozes, específico do Alentejo, tem, antes de mais, de saber procurá-lo. Algo que decorre, naturalmente, da própria origem da música, sobrevivente enquanto canto de trabalho (durante as práticas agrícolas e ao longo dos regressos do campo para a terra, desde finais do século XIX) e de partilha social nas tabernas ao embalo de um copo de tinto.

As tabernas praticamente desapareceram da geografia portuguesa nas últimas duas décadas, substituídas por cafés em que mandam hoje as televisões e em que as cantorias passaram a ser encaradas, muitas vezes, como potencialmente perturbadoras da prática comercial. Veremos se o impulso turístico, daqui em diante, alavancará esse retorno a uma aproximação das tabernas originais, lugar privilegiado para a escuta de uma música que tanto se diz poder ter nascido da música gregoriana e dos cantos polifónicos sacros medievais, como também partido dos resquícios da antiga música árabe deixada na região.

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Sede e taberna do Grupo Coral e Etnográfico Camponeses de Pias

Se a função laboral deixou de ter lugar, devido ao êxodo rural, à emigração e à crescente substituição do homem pelas máquinas nas tarefas agrícolas, a social manteve-se em torno de uma rotina de ensaios em espaços das Casas do Povo ou noutras salas que tornam a música menos pública mas mais rigorosa, sob a direcção do mestre (ensaiador). Embora as gravações em disco existam e continuem a acontecer – nisso está fortemente empenhada a Casa do Cante, em Serpa –, desde o histórico volume de recolhas de Michel Giacometti e Fernando Lopes-Graça dedicado ao Alentejo (que não apenas ao cante), às gravações dos Ganhões de Castro Verde (cinco álbuns, o primeiro dos quais lançado em 1975 pela Valentim de Carvalho, estando actualmente apenas disponível o último O Círculo que Leva a Lua), d’Os Camponeses de Pias, d’Os Mineiros de Aljustrel, o Grupo de Cantares de Évora ou o Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento (em gravações próprias, mas também em discos de António Zambujo), o cante é uma música cuja substância é dificilmente captada pelos estúdios.

O impacto físico do poderio das vozes em uníssono, profundamente telúrico, acontece idealmente na sua presença, de forma a se ser bafejado por tal estremecimento. Também visualmente, na sua marcha lenta e de braços traçados, e nos trajes tradicionais adoptados, encena-se o regresso da monda pelas estradas alentejanas do fim da tarde, ao ritmo das modas entoadas em grupo. Porque, precisamente, o cante vive dessa necessidade e desse desejo profundo de ligação às origens, aos antepassados, à tradição, à terra. Canta-se nessa partilha, que é mais do momento do que da reprodução de uma gravação. E canta-se nos frequentes encontros dos mais de 150 grupos corais em actividade, nas festas populares ou em eventos como o Festival do Cante, em Moura, ou a Festa do Cante, em Monsaraz, mais do que nos álbuns de difícil acesso – ao Cancioneiro do Cante Alentejano, editado pela Tradisom e incluído na candidatura entregue à UNESCO, chega-se, por exemplo, pelo site da editora.

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Ensaio do Grupo Coral de Monsaraz na Casa do Cante

A importância do colectivo e o apagamento do indivíduo, por muito que haja um alto e um ponto que se evidenciam, contribui também para essa menor predisposição da gravação. A sua natureza é da transmissão oral e a da recriação viva, pungente e epidérmica, e os registos cumprem, antes de mais, a documentação, a preservação de um legado e uma prova de vitalidade.

É essa transmissão oral a fazer com que a letra e a melodia de cada moda, apesar de uma matriz popular comum, possam diferir minimamente entre localidades próximas. Ouvidas muitas vezes em feiras e festividades locais, as modas viajavam depois com quem as recolhia e frequentemente se adulteravam pelo caminho, trocando-se uma palavra por outra equivalente ou um trejeito melódico por outro mais familiar.

Por outro lado, também o desígnio colectivo contribui para que, contrariamente ao fado (uma canção muito dependente do intérprete), não possam do cante emergir grandes figuras como Amália Rodrigues ou Carlos do Carmo que sirvam como farol e desbravadoras de outros mercados. Como cantava José Afonso em Grândola Vila Morena, tema que, não partindo do reportório popular, acabou por integrar o cancioneiro destes grupos corais – mercê de respeitar as regras líricas e melódicas do cante e exibir até o som dos passos sobre a gravilha do estúdio francês de Hérouville –, no cante é o povo quem mais ordena. E o povo tem muitas caras, tem muitas vozes.

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