“António Costa vai ter sempre o tema da corrupção como obstáculo”

O presidente da Transparência e Integridade, Luís de Sousa, diz que "há uma série de episódios anteriores ligados ao nome do ex-primeiro-ministro que colocam algumas dúvidas no seu modo de estar na política”. Critica igualmente a ausência de estratégia de comunicação da Procuradoria-Geral da República.

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Luís de Sousa é professor da Universidade de Aveiro Pedro Cunha/Arquivo

Não ficou espantado com a detenção de José Sócrates. Mas o politólogo Luís de Sousa, presidente da Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC), representante português da organização global de combate à corrupção Transparência Internacional, considera que se sabe muito pouco até agora.

Em entrevista telefónica ao PÚBLICO a partir de Aveiro diz, porém, que “há uma série de episódios anteriores ligados ao nome do ex-primeiro-ministro que colocam algumas dúvidas no seu modo de estar na política”. Há sinais que o preocupam: a sobrecarga de um magistrado, Carlos Alexandre, com processos de corrupção.

Diz também que este episódio “traz mais descrédito ao funcionamento da democracia” e acrescenta que António Costa vai ter como herança o tema da corrupção, “não como catalisador, mas como obstáculo”. Critica ainda fortemente a ausência de política de comunicação da Procuradoria-Geral da República e afirma que a exteriorização da Justiça não é igual para todos: com um ex-primeiro ministro há necessariamente maior pressão para obter informação.  

Como tem visto o caso da prisão do ex-primeiro-ministro José Sócrates?
Não sei a razão pela qual está preso, a única referência que temos é a eventual prática de crimes mencionados. Há uma série de episódios anteriores ligados ao nome do ex-primeiro-ministro que colocam algumas dúvidas no seu modo de estar na política. Foram vários episódios, alguns até do foro pessoal: o caso da licenciatura, da Cova da Beira, do Freeport. É uma figura que teve episódios de eventual falta de integridade que deixam dúvidas sobre a idoneidade da pessoa. Esses episódios tiveram vários problemas do ponto de vista da investigação e do desfecho. Mesmo na licenciatura, mostrou que há esta promiscuidade entre universidades e classe política.

Fala-se de a detenção ter sido iniciada por fraude fiscal, corrupção e branqueamento de capitais. Não sabemos se estão relacionados com esses episódios do passado. A fraude fiscal pode ser uma coisa individual, branqueamento também poderá não ter a ver com o exercício de funções – o único que tem a ver com o exercício de funções é a corrupção, porque significa obviamente compra de uma decisão. Mas isso é o que está escrito no Código Penal: o crime de corrupção é um crime de exercício de funções, é um crime de poder. 

A detenção e prisão preventiva de um ex-primeiroministro passa a imagem de que há mais corrupção em Portugal ou de que os mecanismos de combate à corrupção estão a funcionar de forma mais eficaz? 
O índice anual de percepção da corrupção está quase a sair e acho que não vai haver alterações radicais em relação à posição em que estamos no ranking e ao nosso score, porque não houve nada, até aos últimos meses, que demonstrasse um esforço político de combate à corrupção e criminalidade conexa (Portugal estava no 33.º lugar no Índice de Percepção da Corrupção). Como este índice é reputacional, baseado na percepção de homens de negócios estrangeiros sobre o funcionamento da nossa administração, o nosso governo, não prevejo uma queda muito grande. Se fosse formulado durante esta vaga de investigações, mas já não vai a tempo, era provável que houvesse um efeito negativo, mesmo que a Justiça estivesse a actuar, porque os casos estavam a vir a público.

É um pau de dois bicos, sim. Representa, por um lado, que houve ocorrências detectadas e eventualmente sancionadas, vê-se a actuação da Justiça, há um aspecto positivo, mas é uma intervenção que tem sido conturbada. Continua a haver uma ausência de política de comunicação por parte da Procuradoria-Geral da República. Todo este suspense e estes comunicados secos que não revelam nada... Ao mesmo tempo, estamos a ver decisões pesadas – não é uma medida leve e quero acreditar que há fortes razões para isso. A Justiça é igual para todos no juízo, na forma como são tomadas as decisões, sem dúvida. Agora a comunicação do trabalho da Justiça não é igual para todos, porque se trata de um ex-primeiro-ministro e portanto vai haver uma pressão da comunicação social para saber os últimos desenvolvimentos, vai haver uma opinião pública em parte interessada, em parte alimentada por um certo voyeurismo e justicialismo, há uma reputação das próprias instituições face ao exterior, a organismos que nos avaliam – somos avaliados pela OCDE, pelas Nações Unidas, pela Comissão Europeia, pelos homens de negócio, potenciais investidores, agências de rating

A detenção de Sócrates, de outras figuras políticas no caso dos vistos gold, de Ricardo Salgado, num espaço tão curto é coincidência?
Se calhar estamos a congeminar relações onde elas não existem. Dou outros exemplos além desses: o caso dos submarinos tem anos, houve um inquérito parlamentar recentemente que deu naquele triste relatório com uma série de questões que ficaram por clarificar. Aí está um processo que não tem um desfecho limpo. Temos o caso Tecnoforma, que começa com uma investigação de um excelente jornalista do PÚBLICO (José António Cerejo), temos o Monte Branco, que começa lá atrás com outro timing diferente, há o exemplo da ministra Maria de Lurdes Rodrigues que não tem qualquer relação, há o dos vistos gold que não está ligado a nada. Pode haver informação que se retire de um processo e seja utilizada para outro? Pode, mas por enquanto não foi comunicado nada. A única relação é a da experiência acumulada de lidar com um e outro processo. 

Que imagem é que estes casos passam da Justiça?
Do ponto de vista técnico, volto a dizer que não me posso pronunciar, pois não sei de nada. Assumo que haja uma experiência acumulada e alguns dos elementos que estão à frente destes processos têm experiência. Há sinais que me preocupam: a sobrecarga de um magistrado com este tipo de processos ­– o juiz Carlos Alexandre –, porque o homem deixa de ter vida pessoal, há-de sofrer inúmeras pressões. A imagem que passa é que parece que a Justiça só funciona com meia dúzia de bons homens, há uma meia dúzia de juízes, procuradores, que consegue fazer o seu trabalho e depois há uma catrefada que não sabe o que anda a fazer. Isto diz muito da forma como o sistema está formatado.

Já ouvi que há magistrados que quando vêem processos destes fogem, não querem. Se este é o caso, então voltamos à questão de sempre: é preciso criar mecanismos especializados. Nem todos têm de tratar deste tipo de processos, mas quero um núcleo especializado ­– essa especialização tem-se vindo a fazer, mas sem uma estratégia. Não havendo estratégia, uma das consequências é andar a alterar leis, a criar crimes. Outra é a proliferação institucional ­–vão-se criando organismos, fragmentando, para as coisas não funcionarem. Por exemplo, parece normal que um presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção não se pronuncie sobre estes casos? Lá está, este é um organismo inútil, criado para fingir que se dava cumprimento a uma obrigação da Convenção das Nações Unidas de combate à corrupção, que era a criação de mecanismos especializados.

O Governo do engenheiro Sócrates rejeitou a ideia de um seu senador, João Cravinho, de se criar uma Alta Autoridade de Combate à Corrupção e então criaram um conselho de combate à corrupção que é completamente inútil. Como não há estratégia de combate à corrupção, a Justiça tem vindo a especializar-se pelo mão de determinados profissionais, mas eles só o podem fazer até determinado nível. Não havendo recursos, apoio, não podem fazer mais.  

Como é que a lei protege os denunciantes?
Fizemos um relatório, que enviámos à presidente da Assembleia da República, sobre a protecção de denunciantes. Temos apenas uma cláusula numa lei generalista (19/2008, artigo 4) que diz que ninguém pode sofrer represálias por colaborar com a Justiça. Essa cláusula não protege absolutamente nada, não diz quem, não diz onde o indivíduo se deve dirigir para ser protegido. Passámos de uma situação em que sabíamos que não havia protecção para uma lei em que diz que há, mas não a regulamentou, nem está clarificada. Criou-se uma situação pior, dá a impressão que dá protecção, mas não dá. É importante criar um regime específico para proteger denunciantes.

Que mais alterações legais se devem introduzir?
Há várias, mas não é isso que justifica os maus resultados. Os maus resultados derivam da ausência de estratégia política de combate à corrupção. O tema da corrupção tem sido discutido e incluído nos programas de governo de uma forma simbólica. Neste último programa, nas páginas de reforma da Justiça, diz qualquer coisa como: “Temos de melhorar o combate à corrupção.” E é isto. Não tem target, não tem objectivos, não tem calendário, recursos afectos, nada. É uma frase do mais banal que há, onde tudo e nada pode ser incluído. Portanto, no final do mandato, ninguém pode pedir contas de algo que não tem objectivos. Isto repercute-se em sucessivas alterações à lei e na criação de novas tipologias de crime que não adicionam nada. Por exemplo, o crime de vantagem indevida que criou a comissão de Vera Jardim: vamos esperar sentados para ver quantos serão condenados por isso. Temos um crime de tráfico de influências que não tem qualquer aplicabilidade – e este é um país onde ele é das práticas mais recorrentes, até porque o lobby não está regulamentado, faz-se de forma informal. 

Qual é a fragilidade do crime de tráfico de influências?
A forma como está formatado, porque não inclui práticas de lobby ilícito, que não é ilícito nem deixa de ser, porque não está regulamentado e devia estar. Aparentemente, o Governo estava a preparar um diploma nesse sentido para se regulamentar o lobby, portanto estamos à espera. Um diploma desta natureza vai precisar de uma ginástica brutal para se conseguirem consensos dentro das formações partidárias, porque toca os interesses de muitos deputados que têm ligações com sociedades de advogados, que prestam consultoria relacionada com actividade parlamentar... Não vai ser fácil, toca-lhes nos interesses. 

Espera ramificações do caso de Sócrates?
Não sabemos absolutamente nada. O que sabemos é que, enquanto político, teve fumos relativamente à sua carreira e a mim não me espanta nada o que está a acontecer.

Qual deve ser o papel dos partidos políticos neste momento?
Isto traz mais descrédito ao funcionamento da democracia. Independente do desfecho, o impacto já é negativo – o primeiro impacto é que haverá razões para [Sócrates] estar indiciado de alguns crimes e não são de bom comportamento. Independentemente de ser culpado ou não, há um impacto na opinião pública, por isso estes processos têm de ser tratados com pinças. O impacto político é de descredibilização ainda maior. Em todos os inquéritos, os partidos, as instituições representativas da democracia, os políticos vêm no fundo da tabela em termos de confiança dos cidadãos. Não podemos esquecer que cerca de 2/3 da população está insatisfeita com a democracia, com a forma como o Governo conduz a economia. Estamos em período de crise e é natural que a insatisfação seja maior. Mas não é só esta insatisfação ou falta de apoio específico, há uma falta de apoio difuso na democracia – uma coisa é dizer que se está insatisfeito, outra é dizer que não acredita na democracia e não veria com maus olhos outro tipo de regime. 

Não quero soar demasiado alarmante, mas num espaço de uma década houve um aumento de preferências por outras formas que não a democracia. Se falamos de impacto reputacional é isto – é muito fácil perder a reputação e muito difícil reconquistá-la. Este é um dos problemas: como vamos conseguir reabilitar a confiança na Justiça, na política? Aqui há uma tarefa única para os partidos de refundarem o sistema. Se não o fizeram, outros o farão – e falo de outras forças políticas não necessariamente amigas da democracia. Por isso, as elites devem acabar definitivamente com estas atitudes defensivas, devem assumir posições mais rigorosas e mais difíceis – a linha deve ser exigir standards éticos dos seus membros. Se não derem essa resposta inequívoca de que querem refundar o sistema, de que querem acabar com os fantasmas e neblinas da corrupção na vida política, vai haver seguramente consequências políticas.  

Que efeitos terá para o PS?
Provavelmente, António Costa vai ter um resultado fraco, como todos os partidos do arco do governo. Vamos ver como isto se desenrola até às eleições. A corrupção não é o único tema que leva as pessoas às urnas, mas tem um efeito contaminante nos outros temas, agrava essa falta de esperança, porque cria um sentido de impunidade e injustiça social. O que pode acontecer é o que aconteceu com a coligação de centro-direita de Paulo Portas e Santana Lopes: assistirmos a uma vitória porque as pessoas estão de tal forma saturadas que acabariam por sancionar o Governo. Mas tenho sérias dúvidas, porque os casos não estão ligados à coligação, quem está em prisão preventiva é um ex-líder do PS e ex-primeiro-ministro. António Costa vai ter sempre o tema da corrupção não como catalisador, mas como obstáculo.

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