Viagem ao fundo da noite

A féerie decadente de Bertrand Bonello chega mais perto de Yves Saint-Laurent do que Jalil Lespert

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Jalil Lespert pode ter chegado primeiro à meta da “guerra dos biopics” do criador de moda Yves Saint-Laurent – o seu Yves Saint-Laurent (2013) estreou primeiro e teve a “bênção” dos herdeiros.

Mas é Bertrand Bonello, um dos mais consistentes autores do moderno cinema francês, que assina o melhor filme. Onde Lespert trabalhava uma leitura cronológica da ascensão e evolução do costureiro, construída como um banalíssimo biopic hollywoodiano, Bonello opta por centrar-se nos anos 1970 como “ponto fulcral” a partir do qual faz uma espécie de trip entre o passado e o futuro. Mais do que fazer o habitual vai-e-vem entre vida histórica e obra, o que fascina o realizador é a ideia de Yves Saint-Laurent fundamentalmente como “metamorfose ambulante”, para citar a canção de Raul Seixas: uma contradição insolúvel apanhado entre profundidade e superfície, alguém que dizia “amar os corpos sem alma” e colocar-se tudo na glorificação da imagem mas que procurava sempre preencher o que havia por trás dela.

No modo elegante e hedonista como Bonello filma os episódios que escolheu, como dioramas meticulosamente montados enquadrados por espelhos que parecem prolongar ao infinito o campo de visão, Saint Laurent é uma espécie de “viagem ao fundo da noite” por entre desejos e realidades, pelo meio de quartos requintados e ateliers labirínticos na Paris chique e decadente dos anos 1970. Não é surpreendente que este seja um filme infinitamente mais sensual, táctil, atento à sua personagem do que o objecto mais funcional de Lespert. Bonello é, sempre foi, um cineasta “baudelariano” nesse desejo de luxo, requinte e voluptuosidade, atento às letargias sedutoras da sedução e dos corpos, e Saint Laurent vai de encontro a essa decadência perturbante e lânguida que esconde uma série de discretos jogos de poder entre homens e mulheres.

Há que apontar alguns desequilíbrios a Bonello – Saint Laurent não sustenta completamente a sua duração excessiva, tomba por vezes no mesmo narcisismo exacerbado da personagem que lhe está no centro. Mas no seu retrato sensorial e impressionista de um costureiro que libertou a forma feminina (e veja-se o modo como isso é magnificamente mostrado numa cena extraordinária com Valeria Bruna Tedeschi), está infinitamente mais próximo da sua verdade emocional.

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