Árabes, persas e americanos: o que se joga em Viena

Os árabes temem perder para o Irão o lugar central no Médio Oriente.

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Segunda-feira, em Viena, é o dia do acordo ou desacordo sobre o programa nuclear iraniano. Expira o acordo preliminar assinado a 24 de Novembro de 2013 por Teerão e pelo grupo 5+1 — Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Rússia, China e Alemanha. Alguns analistas consideram “quase impossível” um compromisso final segunda-feira. Admitem a prorrogação das negociações. O que está em jogo não é apenas o nuclear. É a possibilidade de “uma viragem tectónica” na paisagem política do Médio Oriente. É o ângulo que aqui nos interessa.

Há um ano, as potências árabes pareciam em declínio. A Arábia Saudita sofrera uma “derrota estratégica” na Síria. Esta estava mergulhada numa agónica guerra civil. O Egipto estava ocupado com a sua crise interna. O Iraque continuava dilacerado. Restavam três potências regionais — Turquia, Israel e Irão — nenhuma delas árabe mas que poderiam assumir um papel determinante na região, do Mediterrânio Oriental ao Golfo Pérsico. Desde então muito mudou. A Turquia viu reduzida a sua margem de manobra e Israel está mais isolado. E entrou em cena a barbárie do Estado Islâmico (EI). Daí a importância de um realinhamento do Irão.

A “tragédia árabe”
Muitos jornalistas e pensadores árabes já não se limitam a falar na decomposição dos Estados, na anulação de fronteiras ou em realinhamentos geopolíticos. Escutemos um desses árabes.

O libanês Hisham Melhem, chefe da delegação da televisão Al-Arabiya em Washington, denuncia um colapso civilizacional. “A civilização árabe, tal como a conhecemos, desapareceu. O mundo árabe é hoje mais violento, instável, fragmentado e conduzido pelo extremismo — extremismo dos governantes e dos opositores — do que em qualquer outro momento desde a derrocada do Império Otomano há um século. Todas as esperanças da história árabe moderna foram traídas. A promessa de uma emancipação política, o regresso da política, a restauração da dignidade humana proclamada pelas revoluções árabes [de 2011], tudo isto desembocou em guerras civis, étnicas e religiosas, em divisões regionais e na reafirmação do absolutismo, sob a forma militar ou sob a tradicional. (...) A civilização árabe desmoronou-se e não se levantará nos dias da minha vida” (Politico, 18 de Setembro).

A geração de Melhem foi ensinada a defender o “Mundo Árabe” contra os bárbaros do exterior — imperialistas, sionistas ou soviéticos. Hoje os bárbaros são outros. “Os bárbaros já estão dentro das nossas portas, falam a nossa língua e estão bem entrincheirados na cidade.” Não aceita álibis externos: “O Estado Islâmico, tal como a Al-Qaeda, é uma criação cancerosa do enfermo corpo político árabe.”

Um número de The Economist (5 de Julho), com o título “A tragédia dos árabes”, provocou inúmeros comentários e lamentos. Há mil anos, as grandes cidades de Bagdad, Damasco e Cairo suplantavam as do mundo ocidental. Hoje, todas as regiões do mundo progridem, excepto o mundo árabe. “Ter uma vida política fechada e espíritos fechados leva ao desastre.” Comentou um jornalista marroquino: “Politicamente os árabes não gostam de se olhar ao espelho. E, quando o fazem, isso resulta em eleições falseadas, em guerra civil, em golpe de estado ou tudo ao mesmo tempo.”

Isto tem desagradáveis efeitos para os árabes na cena regional frisa Melhem num outro artigo. Obama escreveu uma carta ao ayatollah Khamenei, notícia que deixou os sauditas ainda mais nervosos. “[A carta] é emblemática quanto à gradual e subtil viragem nas atitudes de Washington perante a região em geral e os actores árabes em particular. Num Médio Oriente em rápida mudança, os EUA vislumbram uma diminuição da influência árabe pela erosão do sistema estatal, decorrente da falta de legitimidade política, de décadas de autocracia, da ascensão de políticas identitárias que estão a desencadear um sectarismo sangrento e sem precedentes numa larga frente, do Golfo ao Mediterrâneo” (Al-Arabiya, 8 de Novembro).

O velho mundo árabe, com clivagens políticas e ideológicas claras e determinadas por uma competição racional entre Estados, passou à História. Nesse tempo, a identidade proeminente era a árabe, o que impulsionou o secularismo em países como o Egipto, a Síria ou o Iraque. Hoje dominam as identidades étnicas e religiosas. Há um combate visceral entre sunitas e xiitas. “Ironicamente, estas identidades, que são tão velhas quanto o islão, estão a tornar o Médio Oriente mais sectário e ‘menos árabe’”. Entenda-se: os árabes arriscam-se a deixar de ocupar o lugar central na região.

A incógnita iraniana
E, aqui, reentra em jogo o Irão. Em Março, Barack Obama deu uma entrevista ao jornalista Jeffrey Goldberg. Explicou a sua divergência de análise com Israel a propósito do Irão.

“O que posso dizer ao observar o comportamento dos iranianos é que eles [têm uma visão] estratégica e não são impulsivos, têm uma visão do mundo, olham os seus interesses e respondem em termos de custos e benefícios. Isto não quer dizer que não tenham uma teocracia que adopta todo um conjunto de ideias que me repugnam. Mas não são a Coreia do Norte. São um grande e poderoso país que se olha a si mesmo como um importante actor na cena mundial. Penso que não têm pulsões suicidas e podem responder a incentivos.”

Esta passagem resume o pensamento da Casa Branca. Um grupo de veteranos da política externa americana apresentou em Outubro um documento — The Iran Project — que justifica a política iraniana de Obama e sublinha: “Há um laço muito forte entre a resolução da questão nuclear e a capacidade de a América desempenhar um papel num Médio Oriente em rápida mutação.” Uma cooperação estratégica com o Irão mudaria a face da região e ajudaria a superar a grande linha de fractura entre Estados sunitas e xiitas que incendeia a região.

Obama e o ayatollah Ali Khamenei têm muito a ganhar com um acordo. O Irão precisa do levantamento das sanções e quer reforçar a sua estatura internacional. Obama joga o seu prestígio — e a marca do seu mandato — nesta operação. E têm no EI um inimigo comum. Também ambos têm muito a perder se o acordo falhar. Para lá do risco de mais caos no Médio Oriente, renasceria a tensão entre Teerão e Washington. O cenário de adiamento traz complicações a Obama. A nova maioria republicana no Senado dirá que o acordo é inviável e atacá-lo-á. Os sauditas ameaçarão lançar um programa nuclear. Israel reassumirá uma postura ofensiva.

Qual é o problema iraniano? Há uma forte oposição de sectores radicais ao degelo com a América. Fazem do nuclear a sua bandeira. Falam em “humilhação”. Esta retórica encobre uma implacável luta pelo poder. O objectivo de Khamenei, o Guia Supremo que decide em última instância, é a sobrevivência do regime e a preservação da sua natureza. Decidirá em termos de “custos e benefícios”? A incógnita persiste: será o opaco regime iraniano suficientemente forte e seguro para Khamenei fazer uma escolha clara numa questão que divide a classe dirigente? Começaremos amanhã a saber a resposta.

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