Ir a votos ao som da guerra

Com um conflito activo no território, a Ucrânia foi escolher um novo parlamento. Como se vota num país em conflito?

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Eleições com características únicas: o uso do camuflado, por exemplo, generalizou-se GENYA SAVILOV/Reuters

Um ambiente de guerra civil atravessa a Ucrânia, mesmo entre quem está longe da frente de combate. Às mesas de voto, no último domingo, chegavam homens equipados com camuflados, mas que "manifestamente não eram militares", diz ao PÚBLICO Isabel Santos, uma portuguesa que esteve em Kiev como uma das centenas de observadoras eleitorais. "Generalizou-se o uso do camuflado, é quase uma moda", diz-nos. As eleições legislativas ucranianas apresentaram características únicas, que obrigaram a uma atenção redobrada.

Logo na noite eleitoral, após o fecho das urnas e quando se começaram a conhecer as primeiras projecções, as várias equipas de observadores foram lançando as suas conclusões sobre estas eleições disputadas em "circunstâncias atípicas", como descreveu Isabel Santos. De uma forma geral, os chefes das missões destacaram "vários aspectos positivos, incluindo uma comissão eleitoral central imparcial e eficiente, disputas competitivas que ofereceram aos eleitores escolhas reais e um respeito geral pelas liberdades fundamentais".

Mas antes do dia das eleições, eram vários os problemas antecipados pelos observadores internacionais. Havia, logo à partida, as preocupações recorrentes acerca da corrupção, da compra de votos – terão chegado cerca de 200 queixas, segundo Isabel Santos – ou da exposição mediática desequilibrada. A estes somavam-se os problemas que afligem a Ucrânia e tornam o seu contexto muito particular. Calcula-se, por exemplo, que existam mais de 400 mil deslocados internos, pessoas que fugiram – e continuam a fugir, todos os dias – às regiões mais afectadas pelo conflito armado nas regiões de Lugansk e Donetsk.

A decisão da comissão eleitoral foi a de simplificar o processo de transferência temporária dos registos de voto dos deslocados para que pudessem votar no novo distrito eleitoral onde se encontravam. Desta forma, tentou mitigar-se a abstenção forçada de quase meio milhão de ucranianos, possibilitando que votassem, mas apenas nas listas nacionais – e não nos círculos maioritários.

Isabel Santos, que esteve em Kiev ao serviço da Organização para a Segurança e Cooperação para a Europa (OSCE), justifica esta decisão pela falta de "uma relação entre os deslocados e o círculo uninominal onde estava a exercer o direito de voto". "Abrir o exercício do direito de voto, nessas circunstâncias, seria levar a que fossem tomadas decisões muito pouco informadas", acrescenta esta deputada à Assembleia da República pelo Partido Socialista.

A ocupação de parte do território por forças separatistas constituiu também um desafio para a organização das eleições. Dos 28 círculos do Donbass, 15 não foram a eleições, ficando os assentos dos deputados eleitos por esses distritos vazios no hemiciclo ucraniano. A mesma solução foi aplicada à Crimeia – anexada em Março pela Rússia – que Kiev descreve como " território temporariamente ocupado". No total são cerca de 5,3 milhões de eleitores que não puderam votar, num universo de 36 milhões, e 25 lugares vagos na Rada Suprema, "uma lembrança sombria de que grupos armados ilegais impediram os eleitores de votar em certas partes do país", como afirmou a chefe da delegação da Assembleia Parlamentar da OSCE, Doris Barnett.

Num país tão dividido como é a Ucrânia, também o mapa da abstenção mostra essa clivagem. A Ocidente atingiram-se níveis de participação recorde, como em Lviv que chegou aos 70%; a Leste, tanto Lugansk como Donetsk ficaram-se pelos 32%, um número baixo, apesar da abstenção forçada das regiões ocupadas.

"A abstenção no Leste teria que ser alta", nota Isabel Santos. Mesmo em zonas fora do controlo separatista, diz a observadora, "há um estado de espírito na região que não é muito favorável a que as pessoas se desloquem para ir votar". Para além da violência e da morte, a guerra trouxe dificuldades para as pessoas se deslocarem, escassez de alimentos e energia e a chegada do Inverno tem piorado o quadro. "Quando há coisas básicas que estão a falhar nas suas vidas, é natural que o seu empenho cívico saia prejudicado."

Um Leste pouco participativo e um Ocidente com uma vontade colossal de mudança, ainda imbuído do espírito que presidiu a revolta da Praça da Independência no início do ano – que culminou no derrube do Presidente, Viktor Ianukovich, – explica a emergência do Parlamento mais pró-Europeu na história da Ucrânia. Neste contexto, coloca-se a questão da possível falta de representação dos interesses das populações do Leste, algo que é "uma preocupação" para a OSCE, diz Isabel Santos. "O apelo que é lançado pela OSCE e por todos os intervenientes é de que os novos protagonistas da política ucraniana tenham em atenção a integridade territorial e sejam capazes de representar o território em toda a sua diversidade", afirma a deputada que preside à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Parlamentar da OSCE.

A par do "caminho europeu" que os novos poderes da Ucrânia prometeram prosseguir há "reformas profundas reconhecidas pelos intervenientes políticos", que vão desde a descentralização ao combate à corrupção, e que podem unir os ucranianos, diz a responsável: "São questões que não são do Leste ou do Centro, são transversais a toda a Ucrânia."
 

   


 

   

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