Tunisinos deram a ex-membros do regime o poder de decidir o futuro

Foram umas eleições livres e ninguém contesta os resultados, no único país das revoltas onde permanece a esperança de um futuro democrático. Eleitores votaram contra os islamistas e os erros dos últimos anos.

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Apoiantes do Nidaa Tounès festejam junto à sede do partido na capital tunisina Zoubeir Souissi/Reuters

A transição tunisina que se abriu com as eleições de domingo só ficará concluída com as presidenciais de Novembro. E o mais provável é que não haja conclusões sobre uma coligação de Governo até lá. Com 38,24%, o Nidaa Tounès (o Apelo Tunisino) elegeu 83 deputados, seguido do Ennahda (Renascimento), que obteve 31,15% dos votos e vai ocupar 68 lugares no Parlamento de 217. Os vencedores terão forçosamente de se coligar com outras forças para garantirem a maioria de 109.

No que alguns chamaram encenação e outros viram como uma verdadeira prova de fair play democrático, o Ennahda reconheceu a derrota antes da divulgação dos resultados, com o seu líder e ex-primeiro-ministro, Rached Ghannouchi, a felicitar o vencedor por telefone, logo na segunda-feira. No dia seguinte, centenas de apoiantes do partido festejaram nas ruas a "vitória da democracia". "Para nós, a Tunísia venceu, e o Ennahda venceu, trazendo o país até esta fase", disse o coordenador nacional do partido.

"A Tunísia voltou a consegui-lo. Os islamistas foram corridos com a mais bela arma, a das urnas", festejou o realizador Mourad ben Cheikh, que em 2011 esteve no DocLisboa a apresentar o seu Plus Jamais Peur, filme em que segue alguns dos protagonistas da revolta. Ben Cheikh falou ao PÚBLICO no dia da vitória do Ennahda, em Novembro de 2011, defendendo então que o medo dos islamistas "era mais do Ocidente do que dos tunisinos" e criticando uma das suas personagens, a blogger Lina Ben Mhenni, que decidira não votar por não se rever em nenhuma das formações e por defender que o antigo regime ainda não desaparecera.

Nos últimos anos, o medo dos islamistas não parou de crescer para parte da população, a burguesia e a elite intelectual que se habituou ao laicismo autoritário da ditadura, num país onde qualquer exibição pública de religiosidade podia valer uma pena de prisão. Um medo naturalmente exacerbado pelos ataques de grupos salafistas que em 2013 assassinaram dois políticos de esquerda, ameaçaram de morte artistas e activistas e atacaram peças de teatro ou exposição consideradas blasfemas.

Os assassinos dos políticos estão presos e o grupo por trás dos ataques, o Ansar al-Sharia, foi considerado uma organização terrorista e perseguido. Muitos duvidam que membros do Ennahda não tenham ligações aos salafistas (ultraconservadores radicais), enquanto outros acusam o Governo de ter demorado muito a perceber a ameaça e a reagir para proteger as vítimas. A crise aberta pelos assassínios acabou por levar o Ennahda a abandonar o poder e a dar lugar a um executivo de tecnocratas, ao mesmo tempo que negociava com todas as forças, incluindo o Nidaa Tounès e recusava, na Assembleia Constituinte, a chamada lei de "imunização da revolução", que excluiria os responsáveis do regime do processo eleitoral.

Contra e não a favor

"Os tunisinos votaram contra o Nadhda [como o Ennahda é mencionado] e não no Nidaa", resumia na sua página de Facebook Mehdi Hmili, outro realizador tunisino. Todos os observadores – e o próprio partido – concordam que há uma parte de voto útil nos 38% do Nidaa Tounès, gente zangada com a insegurança e com a economia, que se deteriorou, pessoas que se revoltaram porque queriam mais liberdade mas também empregos e que ainda não os conseguiram ou caíram entretanto no desemprego.

A questão é saber o que o Nidaa Tounès vai fazer com esta informação – e se saberá resistir à tentação do poder total. O seu líder, Béji Caid Essebsi, prestes a fazer 88 anos, três vezes ministro de Habib Bourguiba (pai da independência afastado por Ben Ali), embaixador e presidente da Câmara dos Deputados com Ben Ali, que liderou o primeiro Governo de transição, logo em 2011, é o favorito entre os 26 candidatos que se apresentam à presidência.

Assim que os resultados começaram a ser conhecidos, Essebsi disse que o seu partido se iria coligar "com partidos da sua família política", mas isso não se afigura muito fácil. Em terceiro (16 deputados), ficou a União Patriótica Livre, partido mais ou menos inclassificável, liderado pelo milionário Slim Riahi, dono da equipa de futebol Club Africain; em seguida, a Frente Popular, uma coligação de esquerda (15 eleitos).

Mas sabe-se que tanto no Nidaa Tounès, que fez uma campanha muito anti-Ennahda, acusando os seus líderes de obscurantismo, como entre os islamistas há quem admita uma união de esforços. "O melhor cenário seria uma coligação Nidaa Tounès-Ennahda que garanta um Governo estável durante os próximos cinco anos", escreve o jornal La Presse, o mais lido dos diários francófonos do país. O mesmo jornal avisa que excluir os islamistas do poder "comporta um risco: a possibilidade de a guerra ideológica ser relançada com todas as consequências que podemos imaginar".

Os erros do Ennahda

O Ennahda cometeu erros, sim, e muitos, diz ao PÚBLICO o jornalista tunisino Mourad Teyeb, notando que o partido chegou ao poder sem qualquer experiência (e não parece ter aprendido muito, já que se apresentou sozinho, enquanto que o Nidaa "trabalhou muito para construir coligações" e é já um resultado disso).

"Teve uma má estratégia de comunicação e não soube explicar a realidade às pessoas nem lidar com os media imensamente corruptos herdados da era de Ben Ali. Também não quis julgar e responsabilizar estas pessoas, o que foi uma desilusão para muitos", diz Teyeb, que duvida de uma grande coligação. O resultado, defende, é ter dado a essas mesmas pessoas a oportunidade de regressar à política e de derrotar o Ennahda.

Agora, o jornalista teme pelo futuro. Acreditando que "o ‘antigo regime’, partidos, pessoas, polícias e juízes corruptos sempre tentaram manipular a violência islamista" dos últimos anos, Teyeb diz que "se houver violência baseada em extremismo religioso no futuro, o mais provável é que seja provocada por gente de fora, que escapa ao controlo do Nidaa Tounès, o que pode ser muito perigoso e vir de novos grupos desconhecidos no país, como o Estado Islâmico".

Lina Ben Mhenni, a blogger TunisianGirl que em 2011 ajudou a levar a todos os tunisinos as imagens das primeiras semanas de protestos e da repressão policial contra os manifestantes, em cidades pequenas do centro do país, vive há um ano com escolta (ameaçada pelos salafistas) e continua sem acreditar no presente.

"Apesar de ser o país das revoltas em que se derramou menos sangue, não acredito que estejamos na estrada que nos levará à democracia", diz, numa entrevista ao jornal online italiano Linkiesta. "Enquanto não haver justiça, enquanto os crimes cometidos pelo regime de Ben Ali não forem julgados e enquanto os membros do antigo regime continuarem no poder não poderemos falar de democracia real na Tunísia."
 

   





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