Paisagem com batalha em fundo

Melancólica meditação sobre homens e mulheres numa situação de conflito: os acontecimentos da Praça Maidan, em Kiev.

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Como aconteceu com a Praça Tahrir, no Cairo, durante o episódio egípcio da “primavera árabe”, também a Praça Maidan, em Kiev, se tornou extremamente familiar para o mundo inteiro enquanto lugar simbólico da resistência e do poder populares, durante a sequência de acontecimentos que, em finais de 2013, teve como consequência imediata a deposição do presidente ucraniano, Yanukovich, e como consequência de longo prazo um imbróglio de proporções “globais” ainda bem longe do seu desfecho.

Esses dias entre o final de 2013 e o princípio deste ano em que multidões se aglomeraram na Maidan e a Maidan se tornou emblema de mais um conflito leste/oeste são o foco da atenção do cineasta ucraniano Sergei Loznitsa, tradicionalmente dado à reflexão, na ficção ou no documentário, sobre a história do seu país (e a relação do seu país com a URSS), e que aqui encontramos a trabalhar a quente, quase “em directo”, no momento em que a História se desenha.

A Praça faz o relato desses dias, com suficiente informação e contexto para que ninguém se perca, mas sem recorrer àquele mais básico modo de condução do olhar do espectador, o comentário “off”, cuidadosamente evitado. Dos primeiros dias, onde o ambiente é sobretudo festivo, espécie de “happening” popular, ao momento em que a coisa começa a azedar e a atmosfera “pacífica” (mas sempre cheia de uma electricidade a prenunciar tempestade) descamba em caóticas batalhas campais. Como que assinalando que isto é apenas o princípio de uma história ainda sem fim à vista, termina inconclusivamente sobre uma nota sombria, a imagem de um memorial fúnebre improvisado, velas e ramos de flores, pelas vítimas da violência que caiu sobre a Maidan.

Para além desta dimensão informativamente documental, deste lado de “reportagem”, o que é interessante em A Praça, e totalmente condicente com a opção de ignorar um comentário “off”, é o facto de Loznitsa evitar os mecanismos habituais de sugestão de uma “urgência”. Está em cima do acontecimento mas todo o filme trabalha em criação de uma distância, bem longe dos clichés da reportagem filmada, os planos curtos ou a câmara à mão. Pelo contrário, a câmara fixa é dominante em A Praça, e os planos são por norma longos e frequentemente filmados de um ângulo muito aberto. É como uma sequência de “tableaux” arrancados ao “real”, às vezes um estranho bailado de multidões (com muitas canções e tudo), outras uma pintura de paisagem com batalha, numa agitação que tem o condão de ultrapassar as divisões contextuais (os “pró-ocidentais” e os “pró-russos”) para se dar a ver como uma inesperadamente melancólica meditação sobre homens e mulheres numa situação de conflito.

 

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