A capital dos Estados Unidos quer ser um estado. “A sério? A sério!”

Os republicanos dificilmente aceitariam aprovar uma medida que, na prática, entregaria mais dois senadores e um membro da Câmara dos Representantes ao Partido Democrata. Estes sabem que não precisam dos habitantes de Washington, "democratas certinhos".

Foto
Tim Krepp é candidato ao lugar de delegado por D.C. na Câmara dos Representantes DR

Krepp. Tim Krepp. Fixemos este nome por agora, porque muito provavelmente nunca mais vamos ouvir falar dele. Aos 40 anos, decidiu concorrer ao cargo de delegado de Washington D.C. na Câmara dos Representantes, o único que vem com alguns dos poderes atribuídos aos 441 membros que ocupam as cadeiras da câmara baixa do Congresso americano. Pode parecer estranho, mas apesar de pagarem impostos como qualquer outro cidadão, os mais de 600.000 habitantes da capital federal dos Estados Unidos da América não têm o direito de eleger representantes para o Senado e para a Câmara dos Representantes - os homens e mulheres que fazem e aprovam as leis que também os afectam.

O delegado de D.C. não pode votar nas leis mais importantes (as que são votadas por todos os membros da Câmara dos Representantes), mas pode propor leis e votar na comissão de que faz parte. Para além de um delegado eleito pelos habitantes da capital federal dos EUA, a Câmara dos Representantes tem também espaço para delegados da Samoa Americana, Guam, Ilhas Marianas Setentrionais, Porto Rico e Ilhas Virgens. A única diferença é que os habitantes da capital pagam impostos federais.

No caso de D.C., Tim Krepp tem tantas hipóteses de ganhar a eleição de 4 de Novembro como qualquer um dos restantes habitantes do planeta Terra e outras possíveis formas de vida cujos nomes não constam do boletim de voto: a mui venerável Eleanor Holmes Norton, notória feminista, prestigiada lutadora pelos direitos cívicos de negros e da comunidade LGBT, ocupa o cargo desde 1990. São 12 mandatos consecutivos, o último dos quais, em 2012, foi renovado com 89% dos votos.

O candidato chega ao encontro marcado no histórico bairro de Capitol Hill com um café na mão esquerda, a outra no bolso direito, e o andar típico de quem vai encontrar um amigo do peito para falar sobre futebol - se é que isso existe.

As calças de ganga, a T-shirt, o sorriso caloroso como é raro ver-se por aqui e a torrente de palavras que dispara a partir do momento em que diz “Hi there!” são os sinais mais evidentes de que Krepp nasceu para isto.

É também um rei do improviso. Há algum sítio mais pacato para uma conversa sobre política? Um local um pouco mais afastado do burburinho do Eastern Market, que aos fins-de-semana se transforma numa espécie de Feira da Ladra ou da Vandoma mas com mais jovens casais a empurrar carrinhos de bebé? É claro que sim, diz Krepp. Menos de um minuto depois estamos sentados no chão, à entrada de um pequeno parque onde uma criança grita mais alto do que qualquer visitante no mercado que deixámos para trás.

O traço que mais se destaca na fisionomia de Tim Krepp é o seu generoso conjunto de sobrancelhas. É a primeira coisa que se nota quando lhe apertamos a mão, e é a única coisa que se vê nos cartazes que ele e os seus apoiantes espalharam por toda a cidade. “Votem nas sobrancelhas!” é um dos lemas da campanha. O outro é “A sério? A sério!”. Há também uma motivadora hashtag no Twitter: #kreppmentum, uma expressão inventada por um dos seus amigos para dar a ideia de que chegou a hora de levar Tim para o Congresso.

Uma causa perdida
Apesar da informalidade e do sentido de humor, Tim Krepp revela-se tudo menos uma espécie de Tiririca de Capitol Hill. Sabe que a eleição é uma causa perdida, mas resolveu candidatar-se para combater outra causa que também parece estar perdida: a transformação de D.C. num estado, a 51.ª estrela na bandeira dos Estados Unidos.

“É claro que é um objectivo muito difícil de concretizar - e, aqui entre nós, há uma hipótese de eu não ganhar estas eleições [risos]. Apesar disso, sempre achei que é uma questão muito importante. Precisamos de dar início a uma discussão séria sobre este assunto, e só se alguém concorrer a sério contra ela [Eleanor Holmes Norton] é que isso será possível”, diz Krepp, apesar de sublinhar que tem muito respeito pelo historial de activismo cívico da actual delegada.

“Eu admiro-a. Ela é uma heroína dos direitos cívicos, esteve na luta pelos direitos cívicos no Mississipi há 50 anos, está na primeira linha de defesa da comunidade LGBT e das mulheres. E, na verdade, tem sido uma defensora da transformação de D.C. num estado, mas não tem sido consistente nesse trabalho”, argumenta.

E o que é que Tim Krepp, antigo oficial da Marinha, guia turístico de histórias sobre fantasmas e dono de casa em part-time tem para oferecer à luta de D.C. pela passagem de distrito federal a estado federal?

“A primeira coisa que temos de fazer é levar ao Congresso todos os anos uma proposta de lei para a criação de um estado. Eleanor Norton fez isso cinco vezes em 24 anos. Não tem sido consistente. É importante ser-se consistente nesse aspecto, no processo legislativo é preciso apresentar a proposta e convencer outros congressistas a apoiar essa lei. É uma forma de fazer com que eles digam publicamente que apoiam a ideia, e isso é importante porque esta luta vai durar décadas. É preciso fazer isso todos os anos, para irmos aumentando a base de apoio”, explica.

Até Obama é a favor
O apoio à transformação de D.C. num estado é comum à maioria dos residentes. É um desejo da população, do mayor, da delegada na Câmara dos Representantes, de todos os responsáveis eleitos neste bastião do Partido Democrata. Até o Presidente Barack Obama declarou o seu apoio à ideia, numa declaração pública em resposta a uma pergunta directa, em Julho: “Eu vivo em D.C., por isso sou a favor. Os cidadãos de D.C. pagam impostos, contribuem para o bem-estar geral do país e devem ser representados como qualquer outra pessoa”, declarou Obama, apesar de sublinhar que será difícil convencer o Congresso a abraçar a ideia.

No ano passado, na tomada de posse do seu segundo mandato, o Presidente ordenou que todos os veículos da Casa Branca passassem a ter inscrita nas matrículas a frase de protesto mais usada pelos defensores da criação de um novo estado: “Taxation without representation” (“Impostos sem representatividade”, uma adaptação do slogan usado em meados do século XVIII na revolta das 13 colónias contra o domínio britânico, que daria origem à Revolução Americana).

Tal como há 260 anos as colónias britânicas se queixavam de não estarem representadas no Parlamento britânico apesar de pagarem impostos, também agora os habitantes da capital federal dos EUA se queixam do mesmo.

A questão chegou mesmo à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, que no relatório de 2014 registou “a sua preocupação pelo facto ser negado o direito de voto aos residentes do Distrito de Columbia para o Senado e para a Câmara dos Representantes”, no mesmo documento em que denuncia “a prática de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante contra pessoas sob custódia dos EUA”.

A luta tem muitos apoiantes, mas é difícil que se torne uma realidade por duas razões separadas no tempo, uma histórica e outra que reflecte os interesses partidários mais actuais. Por um lado, a Constituição dos EUA foi desenhada para que a capital do novo país ficasse separada de todos os outros estados, como forma de ficar a salvo de possíveis ataques das várias milícias que existiam na época; por outro, o actual Partido Republicano muito dificilmente aceitaria aprovar uma medida que, na prática, entregaria mais dois senadores e um membro da Câmara dos Representantes ao Partido Democrata.

A questão poderá ficar ainda mais complicada este ano, se se confirmarem as previsões de que o Partido Republicano irá retirar a maioria no Senado ao Partido Democrata e passar a dominar ambas as câmaras do Congresso.

É isso que assinala Brian Butters, 67 anos, um dos muitos vendedores que todos os fins-de-semana abrem os seus pontos de venda no Eastern Market, a poucos metros do parque onde o candidato das sobrancelhas explica o seu programa “à imprensa portuguesa”, como faz questão de referir quando é cumprimentado por um dos seus vizinhos com um efusivo “Bom dia, sr. congressista!”

Veterenos que lutaram em guerras
“Os Republicanos nunca vão aceitar mais dois senadores e um membro da Câmara dos Representantes do Partido Democrata. O mayor e a delegada fazem o que podem, mas acho que nada poderá fazer alguma diferença. Não tenho nenhuma esperança de que isso aconteça. Vivo aqui há 25 anos, e acho que seria bom passarmos a ser um estado. Temos mais habitantes do que o estado do Wyoming [e de Vermont], por exemplo. Temos veteranos que lutaram em guerras e que não têm o direito de voto [para o Congresso]. Não há nenhuma razão lógica para isto acontecer, mas os republicanos nunca aceitariam mais senadores democratas”, diz Brian Butters.

“Seria preciso ter um Senado, uma Câmara dos Representantes e um Presidente do Partido Democrata para isso ser possível. Infelizmente acho que os republicanos vão conquistar a maioria no Senado este ano”, lamenta.

Mas a verdade é que isso já aconteceu - por exemplo, nos primeiros dois anos de mandato do Presidente Obama -, e D.C. não ficou mais perto do seu sonho. O motivo, defende Tim Krepp, é que o Partido Democrata não quer perder tempo com as fantasias de uma cidade que é sua até à medula.

“Nas últimas Presidenciais, Barack Obama recebeu 94% dos nossos votos. Por isso, os democratas não precisam de nós. Precisam de se concentrar no Ohio, que muda muito de ano para ano, ou na Florida. Eles sabem que nós somos democratas certinhos.”

Um gabinete-sombra vazio
Para além do delegado de D.C. no Congresso, os habitantes da capital federal vão eleger também nas eleições de 4 de Novembro dois senadores-sombra e um membro da Câmara dos Representantes com igual obscuro estatuto. O gabinete da chamada Delegação Congressista dos Estados Unidos fica numa cave do edifício John A. Wilson, na mesma Pennsylvania Avenue onde trabalha e dorme o Presidente dos EUA.

Depois de se passar pela segurança, à entrada, tudo se torna ainda mais complicado se o objectivo for encontrar o “gabinete-sombra”, cujos inquilinos não têm sequer direito a entrar nas principais salas do Congresso. Funciona apenas como um grupo de pressão, apesar de lhes ser permitido afixar uma placa à entrada da porta com os títulos de senadores e membro da Câmara dos Representantes.

No final de um corredor repleto de material de escritório empilhado de forma pouco discreta, com cadeiras de pernas para o ar e resmas de papel A4, encontra-se finalmente o gabinete C09, onde se esperaria encontrar os “honoráveis” Paul Strauss, Michael Brown e Mike Panetta.

Na mesma cave, no início do corredor, funciona uma empresa de consultoria onde não se avistavam sinais de vida. Sem mais informações, batemos à porta do gabinete dos senadores-sombra durante vários minutos, até que o senso comum regressou e nos explicou que não estava lá ninguém.

“Esses cargos não existem na prática. Eles não têm salário, não têm equipa… Nunca pensei sequer candidatar-me”, diz Tim Krepp, que tem objectivos mais ambiciosos. “Ninguém os leva muito a sério.”

A julgar pela audição realizada no Congresso há pouco mais de um mês sobre a possível transformação de D.C. num estado (a primeira nas últimas duas décadas), os congressistas eleitos pelos 50 estados norte-americanos também não levam a questão muito a sério. A proposta que estava em cima da mesa - a criação do 51.º estado - foi apresentada pelo senador Thomas Carper, do Delaware. Para além dele, só estava na sala outro senador, Tom Coburn, um republicano do Oklahoma. Segundo o relato do Washington Post, Coburn descreveu a audiência como “uma perda de tempo” e não esteve na sala mais do que meia hora.

Sugerir correcção
Ler 18 comentários