“Arquitectos vão gerir Banco de Portugal em Novembro”, diz manifesto provocador

Arquitectos em campanha contra perda de competências exclusivas para executar projectos de arquitectura prevista em propostas de lei do Governo.

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Há registo de 48 mil actos de arquitectura desempenhados por outros profissionais entre 2010 e 2014 enric vives-rubio

A Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitectos (OA/SRN) está a preparar o lançamento do jornal-manifesto Arquitectura por Arquitectos, mais uma peça da campanha que a ordem está a promover para sensibilizar o país para o que consideram ser uma tentativa de desqualificar a profissão e de impor um retrocesso de décadas ao reconhecimento legal das competências exclusivas dos arquitectos.

Em causa estão duas propostas de lei – 226/XII e 227/XII – que pretendem alargar definitivamente a engenheiros civis, engenheiros técnicos e agentes técnicos de engenharia e de arquitectura a competência para planear e executar projectos de arquitectura, ao mesmo tempo que, na prática, excluem os arquitectos da direcção e fiscalização de obras, actos que até aqui partilhavam com os engenheiros.

Os arquitectos venceram esta semana uma primeira batalha ao conseguir que a admissão da petição Pelo Direito à Arquitectura – Cidadãos contra as Propostas de Lei N.º 226 E N.º 227/XII fosse aprovada por unanimidade na Comissão de Economia e Obras Públicas, que deverá agora ouvir os primeiros subscritores do documento, que em duas semanas reuniu mais de 16 mil assinaturas. Os arquitectos Ana Bonifácio, Nuno Teotónio Pereira, Helena Roseta, Álvaro Siza Viera, João Santa-Rita (actual presidente da OA) e Alexandre Alves Costa são alguns dos signatários iniciais, que incluem ainda nomes exteriores à disciplina, como o político social-democrata e comentador televisivo Marcelo Rebelo de Sousa ou a psicanalista e ex-eurodeputada socialista Maria Belo.

Prosseguindo uma campanha iniciada no Facebook, o manifesto Arquitectura por Arquitectos tenta mostrar o que está em causa nestas propostas de lei através de um jornal com notícias fictícias e deliberadamente provocatórias, como “Arquitectos vão passar a operar doentes em lista de espera há mais de 2 anos: a classe acredita que está habilitada para o efeito, visto lidar com x-actos desde tenra idade”, ou “Arquitectos vão substituir juízes nos tribunais: a classe acredita que será bem-sucedida, já que está habituada a carregar resmas de papel”.

O ponto comum destes e doutros títulos fictícios e irónicos – “Arquitectos vão gerir Banco de Portugal em Novembro”, diz um deles, argumentando que a classe está habituada a usar mealheiros – é a tentativa de mostrar que se quer fazer da arquitectura uma injustificada excepção ao princípio de que qualquer actividade com impacto social relevante e que exija uma formação extensa e complexa deve ser desempenhada apenas por aqueles que estão devidamente habilitados para a exercer.

Uma questão de cidadania
Numa sessão promovida pela OA/SRN na quinta-feira, a presidente da secção, a arquitecta Cláudia Costa Santos, e alguns dos seus antecessores no cargo, como os arquitectos Teresa Novais ou João Paulo Rapagão, manifestaram a sua surpresa e a sua indignação pelo conteúdo destas propostas de lei, que vêm pôr em causa a lei 31/2009, fruto de um consenso histórico não apenas no Parlamento, mas entre as ordens profissionais de arquitectos e engenheiros.

Recuando às vésperas do 25 de Abril de 1974, quando o célebre decreto-lei 73/1973 “veio estabelecer um regime legal provisório que acabou por durar 36 anos”, Cláudia Costa Santos recordou que mesmo este decreto, ao permitir a engenheiros e outros profissionais que assinassem projectos de arquitectura, assumia que esta era uma disposição efémera, imposta pela falta de arquitectos. 

“Quando finalmente se revogou, depois de 36 anos de muitas lutas, o decreto de 1973, e as competências dos arquitectos portugueses começaram a ser reconhecidas, pondo-nos a par dos outros países da União Europeia, vem-se agora de repente retroceder a 1973 e pôr outra vez tudo em causa”, denuncia a arquitecta. Uma situação que, argumenta, se torna ainda mais caricata quando Portugal dispõe de alguns dos melhores e mais prestigiados arquitectos do mundo.

Mas se o conteúdo destas propostas pode ser visto como um retrocesso desconcertante, o timing da sua apresentação não parece de todo inocente. É que a dita lei de 2009, ao mesmo tempo que restringia aos arquitectos a competência para realizar projectos de arquitectura, estipulava um período provisório de cinco anos durante o qual a aplicação efectiva da lei ficaria suspensa. Um prazo que terminava justamente agora.

Uma das justificações deste prazo, defendeu Teresa Novais, era “permitir aos agentes técnicos que completassem a sua formação”, tornando-se arquitectos e inscrevendo-se na respectiva Ordem. E argumenta que se pretende agora equiparar “os que se esforçaram e fizeram um up grade com os que se deixaram ficar e não mexeram uma palha”.

A arquitecta sublinha que este não é apenas um combate corporativo, mas também uma questão de cidadania. “Quando se constrói é para 100 ou 150 anos, as coisas ficam cá”, lembra, acrescentando a sua convicção de que “ninguém quererá regressar aos anos em que Portugal foi destruído em termos de paisagem”. E para assegurar que não trai a sua “responsabilidade social” e que “as suas escolhas são devidamente alicerçadas”, o arquitecto, diz, precisa de ter “uma formação complexa, na qual confluem várias disciplinas, e por isso é que em toda a Europa os arquitectos têm de ter cinco anos de formação”.

Inviabilizar uma classe
Teresa Novais não aceita, portanto, que se atribuam idênticas competências e responsabilidades a pessoas que não têm essa formação, alegando que seria o mesmo que “aceitar que desse consultas no Serviço Nacional de Saúde quem tivesse feito os três primeiros anos do curso de Medicina”.

Garantindo que a componente de engenharia na formação dos arquitectos é “muitíssimo superior” à da arquitectura no currículo académico dos engenheiros, Teresa Novais nota que, mesmo assim, “os arquitectos não têm qualquer ambição” de desempenhar funções que devem caber aos engenheiros. “Temos de saber como é que funciona uma rede de águas, mas não a podemos nem queremos projectar”.

E João Paulo Rapagão nota que “também os engenheiros são beliscados com estas propostas”, já que continuariam a partilhar com os agentes técnicos de engenharia, que não dispõem da mesma formação, competências que a lei de 2009 lhes atribuía em exclusividade, com efeitos a partir de 2014.

Rapagão recorda ainda que outro motivo para que a lei de 2009 não tenha entrado logo em vigor foi o reconhecimento de que as autarquias precisavam de algum tempo para contratar arquitectos e recolocar os engenheiros e outros profissionais que vinham desempenhando essas funções. Daí que estas propostas também sejam injustas, defende, “para as autarquias que se prepararam devidamente”.

Cláudia Costa Santos acrescenta o argumento económico: "nenhum turista vem para ver uma obra feita por um agente técnico, mas vêm muitos, como sabemos bem aqui no Porto, para ver obras de arquitectos”.

E o arquitecto Alexandre Ferreira defende que se está a querer “inviabilizar economicamente uma classe profissional”, ao mesmo tempo que se usa a arquitectura para “promover Portugal lá fora e para atrair turismo”. E adianta alguns números. Um quarto dos membros da OA/SRN pediu já a suspensão, diz, por não encontrar trabalho e não estar a exercer.

Uma percentagem de arquitectos desempregados que contrasta com o facto de, segundo afirma, haver registo de 48 mil actos de arquitectura desempenhados por outros profissionais entre 2010 e 2014. E assegura ainda que “num dos concelhos da área metropolitana do Porto, 85 por cento dos projectos de arquitectura que dão entrada na câmara não são de arquitectos”.

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