Presidente da comissão de reforma do IRS teme “balbúrdia total” com cláusula de salvaguarda

Simplicidade da reforma do IRS “está manifestamente em risco”, considera Rui Duarte Morais, Introduzir uma salvaguarda para as famílias sem filhos não serem penalizadas no IRS é uma “salganhada”, diz o fiscalista.

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Rui Duarte Morais liderou a equipa de dez peritos fiscais nomeada pelo Governo. Algumas recomendações foram aceites, outras não Fernando Veludo/Nfactos

O fiscalista Rui Duarte Morais, que liderou a comissão para a reforma do IRS, veio nesta quarta-feira lamentar que a discussão em torno das propostas de alteração no IRS esteja centrada em saber se um contribuinte vai pagar mais ou menos no próximo ano. Quando se propõem medidas fiscais para beneficiar as famílias com filhos, diz, é claro que haverá um agravamento para quem não os tem.

Para o fiscalista, não ver isso é “mascarar” o óbvio. E a solução prometida pelo Governo para – através de uma cláusula de salvaguarda – não prejudicar os contribuintes sem filhos poder pôr em causa a simplificação do imposto, um dos objectivos da própria reforma.

Rui Duarte Morais falava durante uma conferência sobre a reforma do IRS e o Orçamento do Estado, organizado pela sociedade de advogados PLMJ, no CCB em Lisboa, onde defendeu que uma reforma tem de ser feita a pensar no universo dos cidadãos a quem ela se dirige e não em casos particulares.

“Queremos tudo. Somos o povo do sol na eira e da chuva no nabal. É evidente que, assumindo como pressuposto a manutenção da carga tributária – num cenário à economista, em que tudo o resto se mantém constante –, obviamente que se há desagravamento do ambiente fiscal para as famílias com dependentes, há um agravamento necessariamente relativo [para] as que não têm dependentes. É tão óbvio… Não percebo como é que se possa mascarar uma coisa destas”, afirmou.

O fiscalista referia-se implicitamente à promessa deixada pelo Ministério das Finanças de que nenhum contribuinte sem filhos será penalizado pelo conjunto das alterações propostas na reforma do IRS.

Depois de o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, assegurar que em nenhuma circunstância os contribuintes sem filhos iriam ficar prejudicados, o que ainda ontem reafirmou no Parlamento pondo em causa simulações publicadas nos jornais, o primeiro-ministro veio garantir que haverá uma cláusula de salvaguarda que o garanta.

Um dia depois de Pedro Passos Coelho prometer essa medida-travão, o Governo continua sem esclarecer publicamente como vai implementar a medida. O diploma ainda não chegou ao Parlamento.

Os jornais Diário Económico e Correio da Manhã avançaram que os contribuintes poderão accionar essa medida-travão quando, em 2016, entregarem a declaração de IRS que diz respeito aos rendimentos de 2015.

Accionada essa “protecção” (chamada cláusula do regime mais favorável), a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) faz a comparação entre a liquidação do imposto com base nas regras antigas (em vigor actualmente) e as novas regras (de 2015). Com base nessa comparação, o contribuinte fica com a liquidação que lhe é mais favorável. Segundo os dois jornais, a medida-travão é transitória, vigorando até 2017.

Actualmente, o código do IRS já prevê que em caso algum as deduções deixem ao contribuinte “rendimento líquido de imposto menor do que aquele que lhe ficaria se o seu rendimento colectável correspondesse ao limite superior do escalão imediatamente inferior”.

Pagar mais ou menos
Quando se avança com uma reforma que beneficia as famílias com filhos, diz Rui Duarte Morais, o que está em causa são opções relativamente aos critérios de distribuição. “Ou se concorda ou não se concorda. Se se concorda, faz-se [a reforma]. Se não se concorda, não se faz”. E disparou: “Agora, esta salganhada... A simplicidade [da reforma], que era a grande bandeira, está manifestamente em risco”.

“Como contribuinte percebo [que a discussão seja saber se há ou não agravamento do IRS]. Não percebo por que é que o critério de uma reforma [é o de saber] se é boa se em 2015 pagar menos com referência a 2014. Isto não é critério. O critério é saber se a repartição da carga tributária é mais justa”. “Mas obviamente que as pessoas não sentem isto e, portanto, a discussão é: ‘Vou pagar mais’ ou ‘vou pagar menos’”, referiu, para a seguir disparar: “Assim, vamos entrar nesta balbúrdia total que se anuncia, com umas cláusulas de salvaguarda” para garantir que ninguém pode pagar mais do que em 2014.

Ao grupo de trabalho que liderou – e que propôs a introdução de deduções fixas e de um quociente familiar para incluir os filhos e ascendentes a cargo no cálculo do rendimento colectável do IRS – não cabia propor medidas compensatórias, afirmou Rui Duarte Morais, lembrando que o grupo de dez peritos fiscais alertou para o facto de este problema existir.

Rui Duarte Morais afirmou que algumas simulações publicadas nos jornais assentam “em larga medida na exploração, quase ao máximo, daquilo que era dedução que tinha maior coeficiente de conversão e um tecto relativamente elevado, que eram as despesas de educação”. Reafirmou: “Quando se está a legislar, temos de pensar que estamos a trabalhar para o universo das pessoas. Há sempre casos que se afastam do padrão”.

O fiscalista procurou ainda desfazer a ideia de que uma reforma fiscal deve cumprir o papel de estímulo à natalidade, ainda que as medidas no IRS tenham em conta a dimensão do agregado familiar.

“Obviamente que o IRS não faz estimular a natalidade. Não estou a ver ninguém a fazer filhos por razões fiscais. Como costumo dizer um bocado a brincar: não estou a ver, agora, a declaração do IRS transformada num afrodisíaco”, ironizou. A questão, disse, passa por assegurar que “os que existem” são tratados justamente.

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