As janelas do fado estão de novo abertas para o Brasil

Depois de um tempo de invisibilidade, o fado voltou a reclamar uma presença afirmativa no Brasil. Com Carminho, Mariza e António Zambujo, e um festival no Rio de Janeiro e São Paulo. Mas já antes tinha havido as “embaixadas” e, claro, Amália Rodrigues.

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Como em quase tudo que ao fado diz respeito, seria com Amália o ponto de viragem

Acabada de chegar ao circuito lisboeta das casas de fado, Amália Rodrigues saltaria rapidamente do Retiro da Severa para começar a ser disputada pelo Solar da Alegria, o Café Luso e o Café Mondego. Onde a fadista cantava o público acotovelava-se até à porta e, percebendo isso, José de Melo, empreiteiro, tornou-se seu empresário, fazendo com que o cachet da cantora disparasse para valores impensáveis para a época, muito acima de referências como Alfredo Marceneiro.

Foi precisamente com medo de que as gravações esfriassem o entusiasmo em torno das actuações de Amália que Melo só permitiu a sua estreia discográfica, em 1945, lá longe, em terras brasileiras. “Ele dizia-me que se as pessoas me tivessem em casa nunca mais me iam ver aos retiros”, confessou a fadista ao biógrafo Vítor Pavão dos Santos.

Nunca foi assim, no entanto. Mesmo no Brasil, os temas que hoje conhecemos no álbum Pela Primeira Vez, pouco puderam contra uma popularidade em imparável ascensão desde que, em 1944, actuou no mesmo Casino de Copacabana que acolhia concertos de Bing Crosby ou Jean Sablon. A estada acabou por prolongar-se por dois meses e, na visita seguinte, altura das primeiras gravações, Amália começou também a cantar no Teatro República, palco onde estreou um dos seus clássicos, Ai, Mouraria. Pouco depois, abrilhantava já uma festa para o Presidente Getúlio Vargas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ao fim de sete meses, tomada de saudades por Lisboa, recusaria um contrato publicitário da Companhia Antártica Paulista que exigia a sua permanência durante mais um ano. Como em quase tudo que ao fado diz respeito, seria com Amália o ponto de viragem. Se na década de 30 eram frequentes as visitas das chamadas “embaixadas”, de que faziam parte Ercília Costa, Berta Cardoso ou Armandinho, com a diva do fado as apresentações deixavam de destinar-se ao público luso-brasileiro. Em 1949, na sua terceira visita, Amália (muito antes dos Beatles) era recebida por uma multidão em delírio no aeroporto.

A partir do final da década de 40 e durante os anos 50 e 60, à medida que se dá uma súbita eclosão de casas de fado em Lisboa dirigidas por grandes vozes fadistas como Lucília do Carmo, Carlos Ramos, Celeste Rodrigues, Fernanda Maria, Hermínia Silva, João Ferreira-Rosa ou Argentina Santos, estes mesmos protagonistas (e os elencos das suas casas) vão cruzando o Atlântico e actuando com grande frequência no Brasil, repetindo-se muitas vezes a história de Amália – uma curta temporada espraia-se por longos meses. Depois, com a perda de vigor do fado dentro de portas, também no exterior o apelo se esbateu, passando a funcionar como memória desmaiada da pátria junto da emigração.

Antes da nova vaga de fadistas que passaram a correr o mundo, em parte à boleia do circuito da world music, haveria, ainda assim, excepcionais ocasiões em que o fado parecia romper essa apatia. Assim aconteceu com Carlos do Carmo ou com Maria da Fé – também ela passara como jovem fadista pelas primeiras casas de fado no Rio. Mas, em 1984, passadas duas décadas, no âmbito da Ponte Cultural tudo seria diferente: “Não podia vir à rua porque reconheciam-me logo, como se vivesse lá há 20 anos”, lembra Maria da Fé ao Ípsilon. “As pessoas quando ouviam falar em fado pensavam que os artistas tinham de ter todos um ar muito pesado e muito negro e quando viram uma fadista com ar juvenil e aloirada foi um ar fresco”, responsável pelo seu grande sucesso em duas noites de glória no Canecão.

A reabertura de portas para o fado conseguida por Mariza, Ana Moura, António Zambujo ou Carminho, revela agora um novo tempo para o Brasil descobrir o fado que, em 1973, inspirou em Chico Buarque o seu Fado Tropical. Foi precisamente essa nova geração, que “furou os mercados lá fora”, a empurrar Álvaro Covões da promotora Everything Is New para o arranque do Festival de Fado, que este ano se realizou pela segunda vez em São Paulo e no Rio Janeiro, com concertos de Carminho, Camané, Raquel Tavares e Amália Hoje. “Faz todo o sentido que o fado tenha como mercados principais os mercados latinos”, afirmou Covões ao Ípsilon, “sobretudo aqueles que falam português.” “Há coisas óbvias que por vezes estão à nossa frente e a que não damos valor”, comenta, também ele espantado pelo atraso do fado em erguer uma montra semelhante às que tango e flamenco têm por todo o mundo. Os frutos começam a surgir. “Nos concertos do Camané e da Carminho algumas pessoas já conheciam o trabalho deles, mas a Raquel Tavares deixou as pessoas entusiasmadíssimas”, diz Covões. Entre elas, certamente Thales de Menezes, da Folha de São Paulo, que lhe chamou “surpresa arrebatadora”. E possivelmente, Aécio Neves, candidato presidencial brasileiro, que compareceu à etapa carioca do festival.

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