O mau funcionamento da justiça obstaculiza o crescimento

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Paulo Pimenta

Em estudos de competitividade comparada, o funcionamento da justiça é sistematicamente apontado como um dos fatores com influência mais negativa em Portugal. As entrevistas que fizemos vieram corroborar largamente esse diagnóstico.

Ao deficiente funcionamento da justiça atribui-se papel significativo na falta de apetência ou na desistência prematura de projetos empresariais e, em fase mais avançada, na sua inviabilização, em resultados desapontantes ou mesmo no seu falhanço.

Os impactos negativos referidos decorrem essencialmente do grau de imprevisibilidade das decisões e da demora em obter julgamentos definitivos.

O grande número de reversões por tribunais superiores de sentenças proferidas por tribunais de instância menor é um sinal claro da insegurança que impende sobre responsáveis de empresas que, em boa-fé e com cautelas razoáveis, tomam decisões na convicção de que não estão a atropelar a lei sendo, depois, frequentemente confrontados com sentenças de sentidos diferentes nas várias instâncias, com consequências devastadoras.

Complementarmente, e mesmo para aqueles a quem a razão venha a ser reconhecida, a lentidão e complexidade dos processos implicam custos não despiciendos, determinam muitas vezes suspensões no desenvolvimento dos projetos que reduzem drasticamente a sua rentabilidade ou podem mesmo ter consequências fatais; constituem também indesejável encorajamento para quem especula de má-fé com as ineficiências da justiça. No mundo económico de hoje, o tempo é uma variável decisiva: pequenos atrasos podem representar perdas importantes de mercado para a concorrência ou determinar sobrecustos irrecuperáveis de natureza financeira ou com a estrutura fixa.

Acresce que, por razões culturais, existe uma grande insensibilidade em toda a sociedade, particularmente na máquina da justiça, para os assuntos de caráter económico, pelo que a indiferença é a regra e pouca a motivação para contribuir para melhorar o sistema.

Ambos os fenómenos, imprevisibilidade e demora, têm, a nosso ver, duas raízes predominantes: a competência dos agentes – especialmente na área da magistratura judicial, mas também na do Ministério Público – e a qualidade das leis. É necessário definir medidas que estejam ao alcance dos governos para alterar a situação, sabido que têm de enfrentar lobbies muito poderosos na defesa de interesses instalados e cuja eficácia frequentemente se sobrepõe à ação dos muitos agentes da justiça que remam no bom sentido, como é justo reconhecê-lo.

Especialização e Formação
Disponibilizar competências para julgar bem e em prazo mais reduzido, obriga a agir nos temas da especialização, da formação, da obtenção da necessária maturidade para fundamentar julgamento equitativo, da avaliação e da responsabilização. Embora não nos ocupemos aqui do importante tema da reorganização institucional, outros o têm vindo a fazer com objetivos que não se afastam dos aqui referidos.

Há que reconhecer não ser possível, por melhores que sejam as qualidades individuais, concentrar numa pessoa a informação necessária para fazer avaliação competente e expedita da diversidade e complexidade crescente das questões levadas a tribunais de primeira instância. Neles, a especialização terá de ser levada muito mais longe, dando-lhes também acesso a assessores técnicos competentes que possam esclarecer os juízes sobre a enorme subtileza de muitos dos assuntos em apreciação e as consequências das decisões em apreço; referimo-nos, entre muitos outros, aos domínios dos instrumentos financeiros e da contratualização societária.  

São medidas que implicam maior concentração geográfica dos tribunais; seriam financeiramente inexequíveis com uma grande dispersão dos mesmos. Mas o que se ganhará em qualidade do julgamento compensará largamente os incómodos das deslocações, mitigáveis com a acessibilidade a meios de teleconferência e o apoio local à sua utilização: serão certamente muito menos as divergências de julgamento entre instâncias e menor a apetência para recorrer.

Essa especialização tem de ser complementada com formação. Os cursos de direito não conferem, como é natural, conhecimentos suficientes em áreas como a económica, a que aqui mais nos preocupa, para permitirem apreensão rápida dos conteúdos objeto de litígio. Os juízes que se procuram inteirar, em regime autodidata, de mecanismos e procedimentos que não são fáceis mesmo para especialistas, têm tarefa árdua e consomem tempo que atrasa os processos.

Por outro lado, a desigualdade de informação face a juristas altamente especializados em representação de interesses económicos poderosos tem, inevitavelmente, consequências sobre o conteúdo das sentenças. Assim, para além da formação hoje proporcionada pelo Centro de Estudos Judiciários, há que insistir em formação especializada – teórica e em estágio – e no preenchimento de quadros de pessoal condicionado àquela formação (não opcional, como agora) e às classificações obtidas.

Nos termos da legislação portuguesa, compete ao Ministério da Justiça a responsabilidade pela formação de magistrados e por dotar os tribunais dos recursos adequados, o que deverá ser feito em articulação com o Conselho Superior da Magistratura, a quem cabe a responsabilidade pela colocação dos juízes nos diversos tribunais, a avaliação da atuação de cada um deles e a sua evolução na carreira.

Por outro lado, é essencial a um bom julgamento a capacidade de avaliar – com ponderação e bom senso – situações, motivações e comportamentos. Chegar a juiz de primeira instância antes dos 30 anos de idade e de cinco anos de imersão intensa em processos, seja em regime de assessoria de juízes, seja de estágio em gabinetes de advogados ou com juristas de instituições, não pode deixar de conduzir a resultados desastrosos no desprestígio da justiça, na iniquidade percebida principalmente pelos mais desprotegidos e, no aqui mais nos toca, na insegurança que se abate sobre a vida das empresas.

O financiamento desta formação e do complemento de remunerações durante o período de “estágio” é passível de comparticipação pelos fundos europeus. Aliás, esse complemento de remuneração deve ter um valor que torne mais apetecível e prestigiada a carreira da magistratura judicial, aumentando a proporção de licenciados mais classificados que optam por essa carreira.

As mesmas considerações se aplicam à carreira do Ministério Público, onde demoras e processos mal construídos são responsáveis por atrasos e sentenças com resultados frustrantes em termos de opinião pública e do funcionamento da vida económica.

Responsabilização dos magistrados
A boa justiça depende muito da responsabilização pelos resultados do exercício profissional. Quem representa interesses privados sofre consequências imediatas: a clientela e as remunerações esfumam-se perante maus resultados, aumenta a consonância entre qualidade, prestígio e retorno material. Esta associação é muito mais fraca nos domínios das magistraturas judicial e do Ministério Público, particularmente porque os avanços nas carreiras dependem de avaliação muito mais permissiva, muito menos eficaz.

É necessária legislação que permita ao Conselho Superior da Magistratura graduar de modo muito menos concentrado as classificações dos juízes, fazendo delas depender a progressão em carreiras com maior número de degraus. Essa classificação, alias, terá de incidir não só sobre a bondade dos julgamentos como sobre a razoabilidade do tempo que eles demoram. No atual sistema não é possível estabelecer incentivos à melhoria do trabalho profissional ou penalizar, em termos relativos, os menos bons.

Os graus classificativos deverão ser despojados de conotações depreciativas (por exemplo, entre A e F para os “adequados” para a profissão, correspondendo as classificações E e F aos atuais “bom com distinção” e “muito bom”) com critérios valorativos bem objetivados; as carreiras devem ter níveis mais diferenciados, com acesso em função das classificações sem ponderação da antiguidade; dos resultados das classificações e da distribuição dos magistrados por níveis deveria ser dada publicidade irrestrita.

Com juízes bem informados nas áreas dos assuntos que têm de julgar, beneficiando de uma imersão prévia no universo dos diversos atores e responsabilizados, em termos de avaliação e de progressão nas carreiras, teremos certamente justiça mais coerente e mais expedita, com consequências significativas no funcionamento da economia.

As leis: espírito e qualidade
Uma qualidade acrescida dos agentes envolvidos permitirá ainda, sem perda de garantias, introduzir no direito processual procedimentos menos burocráticos que levem a muito maior celeridade nos julgamentos e ao abandono de procedimentos que favorecem indesejáveis práticas dilatórias.

As alterações introduzidas no código do processo civil, que são de saudar, vão nessa direção. São particularmente pertinentes as disposições dirigidas ao controlo e encurtamento dos prazos, nomeadamente no que se refere a práticas dilatórias que inquinam grande número de processos, e à simplificação de muitos procedimentos. Há agora que acelerar intervenção do mesmo tipo nos códigos do processo criminal e do processo administrativo.

Por exemplo, o julgamento da pequena criminalidade pode seguir procedimentos mais ágeis sem ferir a proteção que deve ser dada ao réu, contribuindo para reduzir pendências em processos de maior importância. A interrupção dos prazos de prescrição durante os recursos, qualquer que seja o nível, é outra medida processual que urge generalizar: a prescrição de processos que envolvem acusações gravíssimas em relação a figuras públicas poderosas instila sentimentos de profunda iniquidade e de desigualdade de tratamento que dissolvem valores fundamentais para a coesão social e garantir um funcionamento não distorcido da economia.

Importa também melhorar, e muito, a qualidade dos diplomas legais. A quantidade de correções publicadas é um claro indiciador da falta de cuidado na elaboração das leis, com falhas técnicas e de coerência jurídica, ambiguidades e contradições internas e com outros diplomas. Disposições que não deveriam deixar margem para múltiplas interpretações implicam uma frequente intervenção dos tribunais, com consequentes insegurança e custos para as empresas e os cidadãos.

Ao contrário do que sucede com a legislação comunitária, sempre precedida de considerandos que explicam cuidadosamente as opções tomadas, as leis da Assembleia da República são omissas de preâmbulos e os dos diplomas dimanados do governo não são instrumentos facilitadores de interpretação nem explicam opções divergentes dos pareceres invocados. Estas práticas deveriam ser corrigidas.

Por outro lado, o modo como se procede a alterações da legislação codificada tem graves consequências. Os projetos de códigos são, por via de regra, elaborados por comissões que se pautam por atuação cuidada e ponderada com o objetivo de garantir unidade interna e coerência às respetivas disposições. Aquelas alterações, frequentes e por vezes contraditórias entre si, não são preparadas com o mesmo cuidado, infetando o edifício legislativo.

É, assim, evidente a necessidade de uma auditoria prévia a cada diploma, feita por entidade municiada com juristas de grande competência no seu campo de aplicação, não apenas na formulação teórica. Os custos a suportar com essa entidade e algum tempo adicional seriam largamente compensados pelos ganhos em qualidade e eficácia da justiça.

Claro que não basta conceber boas leis; é necessário assegurar que não sejam descredibilizadas na sua aplicação por insuficiências graves dos sistemas de organização e operacionais que as suportam. Aspeto que tem sido menosprezado em Portugal.

Não há soluções sem uma justiça melhor
Muitas das medidas preconizadas ferem fortes interesses estabelecidos e enfrentam a inércia instalada. Mas as necessárias vontade, competência e sentido de interesse nacional são evidentes em muitos juristas que ocupam os vários órgãos envolvidos, com particular ênfase no Conselho Superior da Magistratura.

Só uma liderança política determinada, competente e credível e a confiança nas instituições permitem enfrentar os problemas gravíssimos do país, convencendo os cidadãos a aceitarem sacrifícios que A aproveitem aos seus filhos. Uma justiça melhor é, talvez, o mais importante contributo nesse sentido.

A seguir: O Investimento Directo Estrangeiro

Os autores escrevem ao abrigo do actual a acordo ortográfico.

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