Fiscalistas vêem falta de transparência na solução para a sobretaxa do IRS

Ministra das Finanças confirma que sobretaxa não desce em 2015. Solução com reembolsos em 2016 suscita onda de críticas de fiscalistas.

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À margem da reunião do Eurogrupo, no Luxemburgo, a ministra das Finanças confirmou a solução preconizada para a sobretaxa EMMANUEL DUNAND/AFP

A ideia do Governo de manter a sobretaxa do IRS de 3,5% no próximo ano, prometendo reembolsar uma parte aos contribuintes em 2016 em função do aumento adicional da receita dos impostos em 2015, está a suscitar as maiores dúvidas entre fiscalistas, que questionam a transparência da medida e dizem que a solução encontrada cria ruído e incerteza para os contribuintes.

A medida começou por ser ventilada à imprensa depois da maratona negocial do Orçamento do Estado (OE) para 2015 no Conselho de Ministros do último sábado, sem que nenhum membro do Governo desse a cara pela proposta. A ministra das Finanças só viria a confirmar esta intenção nesta segunda-feira, no final de uma reunião do Eurogrupo no Luxemburgo, mas nada mais adiantou. “Se o resultado do combate à fraude e evasão fiscal for superior a um determinado patamar, isso reverterá a favor dos contribuintes numa redução da sobretaxa, quando for feita a liquidação do imposto respectivo a 2015, que é uma coisa que só acontece em 2016. Mas de facto há a ideia de fazer isso”, afirmou Maria Luís Albuquerque, citada pela Lusa.

O que se sabe da proposta governamental é que, para haver lugar a um reembolso parcial da sobretaxa em 2016, é preciso que a receita fiscal arrecadada pelo Estado em 2015 fique acima da previsão feita pelo próprio Governo. Será fixado um valor para a arrecadação da receita fiscal e o aumento que se registar acima disso servirá para reembolsar os contribuintes, até ao limite da sobretaxa. Aquilo que o contribuinte tiver a receber (no limite os 3,5% da sobretaxa) vai depender desse aumento.

Nenhum dos fiscalistas ouvidos pelo PÚBLICO conhece um país onde haja uma dedução à colecta do IRS que varie em função do aumento adicional da receita fiscal face ao montante projectado. Mas, na solução confirmada pela ministra das Finanças, fica implícito que o Governo está desde já a contar que as suas próprias previsões possam ser ultrapassadas.

“Nunca vi uma coisa assim”, atira Vasco Valdez, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no último Governo de Cavaco Silva e no executivo de Durão Barroso. “Não conheço nenhum país com uma medida semelhante”, afirma a fiscalista Anabela Silva, da consultora EY. E o mesmo diz o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira: “Desconheço modelos e propostas semelhantes ao nível de impostos sobre o rendimento. O que tem existido, designadamente nos países nórdicos, é fazer depender o valor de despesas sociais, como é o caso das pensões da Segurança Social, da própria evolução da economia e, consequentemente, das receitas fiscais”.

A ideia do Governo é que os contribuintes sejam informados da evolução da receita trimestralmente, num esquema inspirado no e-factura, em que cada contribuinte verifica o crédito fiscal acumulado. Só que, neste caso, os dados de um trimestre poderão ser revistos em baixa no trimestre seguinte, se houver uma quebra na entrada de receitas para os cofres do Estado. Só no fim haverá certeza quanto ao montante a receber.

A pensar em 2016
Em teoria, para haver um reembolso total, seria preciso que a receita dos impostos superasse o objectivo anual em cerca de 770 milhões (montante aproximado da receita fiscal conseguida pelo Estado através da sobretaxa). Para 2015, a previsão ainda não é conhecida, mas o montante estará explanado nas projecções a incluir na proposta de Orçamento.

Certo é que, este ano, a receita fiscal está a crescer acima do previsto, o que levou o Governo a rever em alta as previsões, apontando para a entrada de 36.981,8 milhões de euros, mais 700 milhões do que o valor efectivo conseguido em 2013 (ano que beneficiou do impulso de receita do perdão fiscal lançado no final do ano).

Assuma-se por hipótese que o executivo projectava para o próximo ano uma receita fiscal de 37.200 milhões de euros; se conseguisse, 37.700 milhões no final do ano, a diferença de 500 milhões de euros seria revertida para devolução aos contribuintes.

Todos os meses, os contribuintes vão, no entanto, continuar a pagar a sobretaxa de 3,5%, tal como acontece actualmente. “Na prática, adia-se a diminuição [para os cofres do Estado] da receita da sobretaxa decorrente de uma putativa alteração da taxa respectiva em 2015, não para o ano em que (politicamente) se pretende aplicável (2015), mas para o ano seguinte, deturpando, aqui também, a natureza personalizante das deduções à colecta existentes para efeitos de IRS e no âmbito da sobretaxa”, enfatiza o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, presidente da Associação Fiscal Portuguesa (AFP) e secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no último Governo de António Guterres

Segundo Fernandes Ferreira, a medida afecta a previsão da receita de 2016 e vincula o futuro executivo (saído das próximas eleições legislativas), “ao impedi-lo, por se tratar de uma medida ligada à sobretaxa do ano anterior, de a alterar com efeitos ‘retroactivos’ ao exercício de 2015, quando desfavoráveis ao contribuinte”.

“A retenção do imposto deverá ser feita nos mesmos moldes. Mas o montante reembolsado vai ficar dependente dos resultados. Que segurança é que dá?”, questiona Anabela Silva, fiscalista da consultora EY, que considera que a “transparência fiscal fica prejudicada” com a incerteza que considera ser introduzida por esta fórmula. “Se o objectivo era aliviar a sobretaxa, fazia sentido ser um alívio mensal. O contribuinte vai ter de aguardar pelo reembolso em 2016, tendo em conta uma variável que é uma incerteza”, critica.

A medida introduz um carácter “absolutamente imprevisível”, considera Vasco Valdez, que diz ter “as maiores dúvidas de que a medida seja constitucional”, por se estabelecer um reembolso “sujeito a uma condição, atirando os efeitos para o ano de 2016”. E vai mais longe: “É difícil estar a raciocinar sobre coisas absolutamente aberrantes…”. À Lusa, também Sérgio Vasques, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no último Governo de José Sócrates, criticou a imprevisibilidade da medida, considerando desonesto remeter os custos para 2016. É “um facto desconhecido e incerto e de comprovação muito difícil, porque determinar que [parte] da receita fiscal resulta do combate à fraude ou crescimento à economia ou de opções das empresas e das famílias é extremamente difícil”.

Luís Leon, fiscalista da Deloitte, considera, por seu lado, que o Governo não tem alternativa a manter a sobretaxa. “Já temos uma execução orçamental muito desafiante, abdicando da Contribuição Extraordinária de Solidariedade [aplicada às pensões] e começando a repor os salários da função pública [em 20%]. Fazer isto e cumprir um défice igual ao deste ano já era difícil, quanto mais com a meta do défice de 2,5%”, diz.

O Presidente da República também se pronunciou nesta segunda-feira sobre a carga fiscal, para lançar uma pergunta e dar a resposta. “Quem não gosta de impostos mais baixos? Não só as famílias. Os políticos gostam de baixar os impostos, estou convencido de que o Governo ficaria muito satisfeito por poder disponibilizar uma descida de impostos para os portugueses”, disse em Cavaco Silva, em Vale de Cambra, segundo a Lusa.

A descida da sobretaxa do IRS em 2015 em um ponto percentual (para 2,5%) chegou a ser defendida por Paulo Portas, vice-primeiro ministro e líder do segundo partido da coligação governamental. Mas a solução discutida no Conselho de Ministros de sábado acabou por não a contemplar.

Inicialmente previa-se que a reforma do IRS fosse apresentada até esta terça-feira, um dia antes da data limite para a entrega no Parlamento da proposta de Orçamento do Estado para 2015. Mas o dossier só deverá ser fechado depois disso, e estará em cima da mesa do Conselho de Ministros de quinta-feira. Não há agora uma data prevista para a apresentação da reforma. Com Luís Villalobos

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