A vingança serve-se fria durante o espectáculo

Nove dias em Setembro para mostrar teatro, mas também para olhar o destino colectivo do Brasil nos Olhos. No Mirada - Festival Ibero-americano de Artes Cénicas houve política, dúvida e perguntas sobre a democracia brasileira.

"Puzzle (a)", de Filipe Hirsch
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"Puzzle (a)", de Filipe Hirsch CHRISTIANA CARVALHO/dr
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"Walmor y Cacilda - Robogolpe 94", do Teatro Oficina Jennifer Glass/DR

Confissões de tortura, provas de ocultação de corpos, testemunhos de perseguições. Tudo isto e muito mais fará parte do relatório final da Comissão Nacional da Verdade brasileira, a ser entregue em Dezembro à Presidente Dilma Roussef – ou a quem estiver no seu lugar. Quem será? Em ano de eleições, tudo parece possível, inclusive um golpe de direita que talvez já esteja em curso, como disse Marcelo Drummond, do Teatro Oficina, a propósito da apresentação de Walmor y Cacilda 64 - Robogolp, num dos encontros entre artistas do Mirada - Festival Ibero-americano de Artes Cénicas, que decorreu entre 4 e 13 de Setembro, em Santos.

No final desse espectáculo, sugere-se que o Brasil está novamente à beira de outra viragem à direita em reacção à contestação social que se vive há anos e mais agudamente desde as manifestações de Junho de 2013. Vários dos espectáculos estreados este ano reproduzem esses factos e inventam outros, imaginários, olhando o destino colectivo nos olhos.

No Mirada, além de Walmor, foi reposto Puzzle (a), a primeira parte de um ambicioso retrato do país a partir da literatura brasileira (encomendado a Filipe Hirsch para a feira do livro de Frankfurt de 2013), e tiveram estreia absoluta Fausto, da Companhia São Jorge de Variedades, versão sampa - de São Paulo - de um duelo com deus e o diabo, e Nuestra Senhora de las Nuvens, dos Clowns de Shakespeare, sobre exilados políticos do tempo das ditaduras sul-americanas. Em São Paulo, neste mesmo mês, estrearam Medeia, do Folias, uma exploração dos efeitos da desagregação do Estado na esfera íntima, e Baderna, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, “metáfora da formação do povo brasileiro” em resposta à ordem de despejo do grupo. Ensaio sobre a Esquadronização Geral e Condomínio Nova Era são outros espectáculos recentes à volta dos mesmos temas: aumento do custo de vida, especulação imobiliária, despejos, violência policial, depredação de recursos naturais, genocídio – falta cumprir-se algo na democracia local.

A tendência é continental. No Mirada, vários dos espectáculos em cartaz se debruçavam sobre os corpos e os fantasmas das ditaduras sul-americanas, a começar pela do Chile, país homenageado nesta edição do festival, com A Imaginação do Futuro, uma paródia sobre a exumação de Allende, mas também La Reunion, do Teatro en el Blanco, auscultação dos sonhos de Cristóvão Colombo e Isabel, a Católica, tornados pesadelo com a aparição de um menino vingador (pôde ser visto em Portugal, no âmbito do Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian) ou Castigo, do Teatro La Memoria, sobre a vingança gélida de uma criança contra uma austera casa burguesa; e passando pela Colômbia, com O Ventre da Baleia, sobre o desaparecimento de menores, ou pela Bolívia, com Os B. Considerações Apolíticas sobre o Nacionalismo, vol. I, alegoria da transformação do país em Estado plurinacional, do grupo Textos que Migran.

Um continente imaginário

Nuestra Senhora de las Nuvens, assim mesmo, em “portunhol”, é a montagem dos Clowns de Shakespeare, grupo oriundo de Natal, Rio Grande do Norte, de uma peça célebre do igualmente célebre Aristides Vargas, argentino exilado no Equador desde 1975. O espectáculo faz parte de uma pesquisa sobre a identidade latino-americana, suscitada pela intensa circulação do grupo pela América Latina, em especial pelo Chile, onde estiveram um mês, com Ricardo III, encenado por Gabriel Villela. A peça relata o encontro entre duas personagens que vivem no exílio, aqui interpretados por vários actores, e cruzado com depoimentos de exilados brasileiros. O único traço comum aos países da América Latina é o “desejo dessa latinidade”, diz Fernando Yamamoto, o encenador, “desejo provocado pela resistência às ditaduras”. A aproximação dos 50 anos do golpe no Brasil “vinha mexendo muito com a gente”, mas a escolha do tema foi mais uma consequência do que uma intencionalidade. As reacções do público da estreia foram muito diferentes de geração para geração, conta Yamamoto: os mais novos surpreendem-se com o relato, os mais velhos comovem-se.

A outra estreia do Mirada foi a primeira parte de Fausto da São Jorge. “Faustos desfilam insatisfeitos em carros blindados, em grandes avenidas, desgraçando vidas em busca de um instante de prazer”, conta uma das co-directoras, Claudia Schapira. Desdobrando as personagens da obra de Goethe pelos vários actores da companhia, numa versão coral que expõe o conflito entre o criador e a própria obra, este Fausto é como um terramoto e suas réplicas, ecoando no espectador uma e outra vez. É a São Paulo cosmopolita, moderna e enriquecida que aqui se dá a ver, longe de qualquer retrato típico e pitoresco do Brasil. “Muitos querendo tudo e tantos oferecendo mundos e fundos, à revelia do interesse da maioria e sem se importar com a alma pois o afã está no prazer imediato da satisfação fugaz e insaciável”, descreve Schapira. O retrato é indirecto, sublime, universal, mas o espectáculo termina com o anúncio, na tela de projeção, de que a parte II chegará brevemente às “ruas e praças de classe alta de São Paulo”, enquanto se vêem imagens dos arranha-céus paulistanos. Conhecendo a maneira como a São Jorge tem invadido as ruas, com adaptações de Dom Quixote ou de textos de Heiner Müller, mal podemos esperar.

Puzzle (a) usa a literatura como biópsia, criando cenas a partir de vários contos, entre os quais, Caos, de Jorge Mautner (na foto), A lei, de André Sant’Anna ou Você é Tão Simples e Eu Gozei, de Juliana Frank, por exemplo. Ainda que a selecção de textos seja uma resposta ao país que “vem se desenhando nos anos pós-ditadura”, os eventos no Brasil acabaram por conferir maior força às escolhas feitas, diz um dos actores do espectáculo, Rodrigo Bolzan. O espectáculo tem “forma e força de manifesto”, afirma. Feito por uma equipa de artistas multifacetados ligados ao teatro de pesquisa, por esse facto trabalham “em constante atrito com a política e o contexto social”. Logo na estreia, em Frankfurt, coincidiram com a postura do escritor Luiz Ruffato, quando este denunciou em discurso oficial os males do Brasil. Enquanto Ruffato discursava, numa das cenas do espectáculo, o actor Felipe Rocha “dizia atrocidades em tom de ufanismo num texto criado com notícias de jornal”.

Na Medeia, adaptada por Sérgio Roveri, a personagem principal tem visões que reproduzem episódios reais de linchamento ocorridos em todo o Brasil. Para Marco Antônio Rodrigues, o encenador, “há uma cultura de violência epidémica que o Estado não dá conta; todo o cidadão é suspeito aos olhos dos outros cidadãos e portanto pode ser eliminado”. A luta entre indivíduo e Estado está no centro da peça, num contexto em que o contrato social deixou de ter efeito e no lugar da ideia de cidadania resta apenas a ideologia do consumidor. “Talvez as manifestações de Junho sejam tentativas de romper com a ideologia: a ordem institucional não serve mais, não atende às questões da individualidade. Houve ontem aqui uma manifestação em que quebraram o centro inteiro, virou uma praça de guerra por causa da reintegração de posse de um edifício ocupado por famílias de moradores sem tecto. Há uma insatisfação que não está institucionalizada nem organizada. E isso começa a vazar.”

Acabada de estrear, Baderna é inspirada na vida de uma bailarina italiana no Rio de Janeiro do séc. XIX, cujo comportamento transgressor levou a que fosse cunhada a expressão “baderneiro”. No início das manifestações, era com esse epíteto que parte da imprensa e da população brindava os contestatários. Mas este espectáculo conta também a estratégia de resistência do Núcleo Bartolomeu e de outros grupos contra a especulação em torno do preço do metro quadrado em São Paulo, que torna inviáveis os preços de aluguer de espaços ou, no caso, leva mesmo à demolição para a construção de projectos imobiliários. Em redor do espaço do grupo, onde existiam lojas e moradias, está um estaleiro de obras. Para a estreia, os criadores optaram por começar a demolir eles próprios o espaço e estrear num teatro em ruínas.

Teatros de Verdade e de Vingança

Passaram 50 anos desde o golpe militar de 1964 e quase 30 desde a campanha Diretas, já! que, ao exigir que a escolha do Presidente da República fosse por sufrágio universal, conduziu à eleição de Tancredo Neves, um civil, e, na prática, assinalou o fim da ditadura militar. Mas a reacção da polícia à contestação nas ruas tem tirado o lustro à democracia que vai a votos este Outubro, permitindo comparações com a censura e repressão do período da ditadura. Quase 500 organizações e movimentos sociais defendem a realização de uma nova assembleia constituinte.

As posições conservadoras, o voto evangélico, os casos de corrupção, a aliança da alta finança com o agronegócio e com os media, tudo é motivo de polémica e desgosto para os eleitores. A julgar pelas conversas nos bares e nos transportes públicos, muitos marcarão o código electrónico que corresponde a cada candidato fechando os olhos para não verem o que fazem: do mal, o menos, pensarão. O teatro brasileiro, não. A cena local tem os olhos bem abertos para poder ver tudo o que está a acontecer no Brasil e, mais importante ainda, imaginar o que possa acontecer.

Olhando para o todo, dir-se-ia que estamos na presença de uma alternativa comissão da verdade nacional, que se reúne nos teatros, encarregue não apenas dos factos ou da justiça, mas da ficção e da vingança simbólica. Já em anos anteriores, Orestéia, do Folias, Ópera dos Mortos, da Companhia do Latão, e Édipo, do Núcleo Bartolomeu, faziam uma retrospectiva dos últimos 50 anos. A necessidade parece não ser satisfeita. Outras obras, actualmente em cena, como Cantata para um Bastidor de Utopias e Condomínio Nova Era, ambas dirigidas por Rogério Tarifa, ou Ensaio sobre a Esquadronização Geral, do Teatro de Narradores, partem da realidade para criar uma nova cena. Cruzando documentos e testemunhos reais com os enredos de peças de teatro ou com outras obras literárias, estes artistas cruzam mito e contemporaneidade, sonho e noticiário, para escapar ao real e imaginar um futuro melhor.

A Comissão Nacional da Verdade brasileira é a mais tardia do tipo na América Latina, apesar de a ditadura originada no golpe de 1964 ser a precursora da operação Condor, o teatro de marionetas sangrento que esteve em cartaz durante toda a Guerra Fria. A cena brasileira foi uma das vítimas da repressão, com as experiências do Teatro Arena e do Teatro Oficina interrompidas anos a fio, até serem retomadas já nos anos 1990. A vingança desse golpe é um prato que se serve frio, cortesia destas companhias de teatro. 

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