"O Japão vai manter-se como o país mais pacifista de todos os países do G20”

Apoiado pelos Estados Unidos, Shinzo Abe deu mais um passo para tornar o Japão num “país normal” em termos militares. Mas medidas são causa de mais tensão com China e Coreia e afectam a popularidade do primeiro-ministro.

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Parada das Forças de Auto-Defesa japonesas Issei Kato/Reuters

Depois do seu regresso ao poder em 2012, Shinzo Abe já não estava habituado a derrotas eleitorais. E foi com surpresa que viu, no início de Julho deste ano, o seu candidato do Partido Liberal Democrata às eleições locais em Shiga perder a corrida para o Partido Democrata, a oposição à esquerda do actual governo japonês.

No entanto, ao contrário do que se poderia pensar, a derrota eleitoral – e a descida pela primeira vez do nível de popularidade de Abe para níveis inferiores a 50% - não se deve à economia, o tema que tem feito cair vários primeiros-ministros no Japão na última década. O problema para Abe está num tema que mexe com a consciência do país desde a Segunda Grande Guerra: a estratégia de segurança do Japão.

No dia 1 de Julho, Shinzo Abe anunciou uma mudança na interpretação dos artigos da constituição japonesa que definem qual o papel que pode ser desempenhado pelas forças militares do país. Não mudou o texto da Constituição, o que exigiria uma maioria de dois terços no parlamento e a realização de um referendo, apenas definiu como é que essa Constituição deveria ser lida.

Para o Governo japonês foi somente uma ligeira adaptação a novas realidades. Mas para os países asiáticos que mantém uma relação difícil com o Japão e para a oposição interna a Abe foi uma mudança radical na política de segurança do Japão, marcada desde a Segundo Guerra Mundial pela abstinência auto-imposta em entrar num conflito militar. Aparentemente, a maioria da população no Japão considera as mudanças introduzidas por Abe como uma ataque ao pacifismo japonês. E não gosta do que está a ver.

Na Constituição japonesa, criada após a derrota na Segunda Guerra Mundial quando o país estava sob o controlo dos Estados Unidos, o país ficou fortemente limitado em relação ao que poderia fazer em termos militares. Olhando apenas para o texto da Constituição, o Japão fica mesmo sem poder fazer nada. No artigo 9, afirma-se que “forças terrestres, marítimas e aéreas, assim como outro potencial de guerra, não podem ser mantidos”.

Esta restrição total não demorou muito a ser reinterpretada. Em 1954 foram criadas as Forças de Auto-Defesa, destinadas apenas a actuar em caso de ataque ao país. Estas forças ficaram proibidas de ser enviadas para o estrangeiro, uma maneira encontrada pelo Japão de, não só garantir aos outros países da região que não tinha qualquer ambição de repetir a estratégia expansionista da Segunda Guerra Mundial, como também mostrar aos Estados Unidos que não estava disponível para ajudar nos conflitos na região relacionados com a guerra fria.

Em 1991, foi feita nova mudança. Para responder às críticas internacionais de que o Japão não contribuiu em nada para a Guerra do Golfo, as Forças de Auto-Defesa passaram a poder ser enviadas para fora do país, mas mediante restricções muito apertadas. Não podiam estar armadas, nem ser enviadas para zonas onde estivessem a ocorrer conflitos.

Ao longo dos tempos, e à medida que iam surgindo ameaças como as da Coreia do Norte, as Forças de Auto-Defesa foram recebendo equipamento cada vez mais sofisticado e que podem em teoria ser também utilizados em caso de ataque. E muitas vezes foi discutido no Japão, em termos legais, a possibilidade de armas nucleares poderem ser consideradas como armas de defesa.

Agora, o que Shinzo Abe fez foi dar mais um passo no sentido de tornar o Japão, do ponto de vista militar, num “país normal”. A sua reinterpretação da Constituição abre a porta à possibilidade de o país adoptar uma estratégia de “auto-defesa colectiva”. O que isto significa é que as forças militares do Japão podem actuar fora do país para apoiar um país aliado que esteja a ser sujeito a um ataque. Essa ajuda, contudo, tem de ser feita de forma muito limitada e apenas no caso de o ataque colocar em causa a existência do Japão, não havendo outra forma de proteger a população japonesa.

A mudança proposta resulta não só do facto de Shinzo Abe ser um líder de características nacionalistas que sempre defendeu a reabilitação do Japão como um actor activo na política regional, como principalmente dos receios crescentes no país em relação à ascendência da China como potência económica e militar mundial.

No imediato, o Japão receia que conflitos de pequena dimensão, como os relacionados com as disputas de ilhas com a China (e também com a Coreia do Sul) possam ser motivo para uma escalada militar a que o país não consiga responder.

E o próprio apoio dos Estados Unidos – que foi desde a Guerra, a garantia para que o Japão pudesse abdicar de uma força militar mais forte – está agora mais rodeado de dúvidas, à medida que os norte-americanos revelam pouca capacidade para acompanhar o investimento militar chinês no Pacífico. São aliás os Estados Unidos – que depois da Segunda Guerra Mundial tinham empurrado o Japão para a desmilitarização total - os principais apoiantes da mudança de estratégia de Abe, na esperança que o Japão os ajude de forma mais activa na sua política de segurança para a Ásia. “O equilíbrio entre EUA e China mudou muito e a China está a expandir-se. É natural que estejamos preocupados”, resume Shinichi Kitaoka, do Instituto Nacional de Estudos de Política – GRIPS, um think tank japonês que se dedica à análise de questões geo-estratégicas.

Se, na sua maioria, os japoneses parecem desconfiar deste desvio em relação à política pacifista do país, muito mais apreensivos estão ainda os países com quem o Japão tem um historial de violência e conflito. Para além da mudança na interpretação da Constituição, China e Coreia do Sul acusam o Japão de estar a querer regressar ao passado, mostrando-se particularmente incomodados quando Shinzo Abe e outros membros do seu Governo visitam o templo Yasukuni, para fazer homenagem aos soldados japoneses que lutaram na Segunda Guerra, ou quando as autoridades japonesas se mostram reticentes em reconhecer algumas das atrocidades da conflito.

Shinichi Kitaoka defende que não há motivos para tantas preocupações. “Há mudanças na interpretação do artigo 9, mas cada um dos passos foi gradual. São passos bastante modestos. E mesmo com estas medidas, o Japão vai manter-se como o país mais pacifista de todos os países do G20”, afirma.

E em relação às relações com a China, a questão económica pode ter um papel fundamental na redução das tensões. "O crescimento militar chinês não é positivo, mas precisamos de uma China que cresça economicamente. Acho que as relações vão melhorar brevemente”, diz Kitaoka.

O jornalista viajou a convite do Foreign Press Center Japan e do Ministério dos Negócios Estrangeiros japonês

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