O Alentejo canta, logo resiste

Podia ser o requiem por uma tradição em vias de desaparecer, é o retrato de um povo que canta, logo resiste. É Alentejo, Alentejo, de Sérgio Tréfaut, documentário sobre o cante alentejano, filme-ensaio sobre um território, sobre o país, agora. Fomos com o realizador a alguns dos lugares onde filmou. É fácil esvaziar um tanque de gasóleo porque Tréfaut conhece o Alentejo como se estivesse em casa.

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Trailer Alentejo, Alentejo

A primeira imagem de Alentejo, Alentejo, o novo filme de Sérgio Tréfaut, é a de um morto. Não que isso seja explícito: é, antes, uma homenagem íntima ao mentor de um grupo de cante alentejano de Pias, que morreu durante a montagem do filme. Mas, sabendo isso, e vendo depois as gerações mais velhas conjugarem sempre no passado – perfeito, imperfeito –, não é difícil concluir: o cante alentejano já não devia existir.

Quase todas as expressões de música popular que Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti recolheram nos anos 1960, do Minho ao Algarve, são hoje arqueologia. Que chances de sobrevivência tem um canto colectivo nascido e criado nos rituais do trabalho no campo se a agricultura foi ocupada por máquinas? Com que voz se destrona uma debulhadora? Na era Facebook, que utilidade têm modas cantadas por rapazes às raparigas em bailes?

“Sobe acima ó laranjinha,/Dá meia volta ao par,/Ainda tu hás-de ser minha,/Ainda eu te hei-de deixar.”

E o Alentejo é grande, mas cada vez mais vazio. “Pias e Vila Nova tinham mais população dantes, quando eram aldeias, do que tem hoje Serpa, que é cidade”, constata Sérgio Tréfaut. A morte é tema tão frequente no cante alentejano que é como se o próprio tivesse preparado o seu requiem.

Alentejo, Alentejo abre com uma sequência de rostos: um homem, depois outro, e assim sucessivamente, estáticos como fotografias, de olhar frontal, por vezes desafiante. É como se estes rostos é que estivessem a olhar para nós, mais do que nós a olharmos para eles. É isso: o espectador sente-se olhado. Se fosse um western, esta seria a cena do duelo. O fundo é negro porque é de noite, mas é tentador ver nisso uma metáfora sobre o próprio cante alentejano. O som é de pés a marchar sobre a terra. Zeca Afonso começa a cantar Grândola Vila Morena. Mas o que é isso de “o povo é quem mais ordena” num país que prefere a resignação? Portanto: o cante alentejano já não devia existir.

A serenata

É fácil esvaziar um tanque de gasóleo no Alentejo porque Sérgio Tréfaut conhece o território como se estivesse em casa. Nascido em São Paulo, no Brasil, filho de um alentejano e de uma francesa, tinha 12 anos quando visitou pela primeira vez o Alentejo. “Senti na pele o abismo que existia entre o mundo cosmopolita em que eu tinha crescido, primeiro no Brasil, depois em Paris, rodeado de exilados políticos, jornalistas e universitários, e o modo de vida pobre de uma pequena aldeia alentejana, onde toda a gente trabalhava no campo e, com sorte, aprendera a escrever o nome depois dos anos 40 anos”, escreveu o realizador numa nota de imprensa sobre Alentejo, Alentejo.

Muitos dos seus filmes têm uma ligação com o Alentejo: em Outro País (1999) filmou o reencontro de fotógrafos estrangeiros com os lugares que tinham fotografado durante a revolução portuguesa, em particular Baleizão e Pias, no Baixo Alentejo. Fleurette (2002), documentário confessional em que confronta a própria mãe com a sua biografia e história familiar, também tem cenas filmadas no Alentejo. Viagem a Portugal (2011) foi rodado em Serpa, embora a acção se passe no aeroporto de Faro. A sua próxima ficção, que começa a ser rodada em Janeiro, será uma adaptação de Seara de Vento, de Manuel da Fonseca, inteiramente filmada em Beja.

Foi quando filmava Viagem a Portugal que o presidente da Câmara de Serpa, João Rocha (hoje presidente da Câmara de Beja), o convidou para fazer o filme de candidatura do cante alentejano a Património Cultural da Humanidade, apresentada no ano passado à UNESCO, com a duração de dez minutos, e uma longa-metragem. O filme de dez minutos está disponível no site de Alentejo, Alentejo. Embora muitas imagens sejam comuns aos dois filmes, eles são muito diferentes: a curta-metragem é narrada por uma voz off, como um documentário sobre a vida selvagem, que dita informações básicas sobre o cante alentejano. “É uma peça informativa, que cumpre uma função de dar a compreender o cante alentejano a pessoas dos cinco continentes – um tailandês, um guatemalteco, um sul-africano ou um egípcio que, eventualmente, nunca ouviu falar de cante alentejano, nunca ouviu falar do Alentejo, se calhar nem sabe onde fica Portugal”, resume Sérgio Tréfaut.

O realizador já tinha filmado cante alentejano antes, em Outro País e Fleurette, mas não chegara a incluir essas sequências nos filmes – uma delas com a sua mãe “a chorar baba e ranho numa taberna de Pias, a ouvir cante alentejano”.

 “O meu pai convenceu a minha mãe a vir morar para Portugal pondo uma serenata de cantores alentejanos debaixo da janela dela na primeira noite que ela dormia na quinta [perto de Moura, no Alentejo]”, conta. “Sendo que o meu pai é surdo – surdo no sentido de que não consegue distinguir A Marselhesa de nada. Não tem ouvido musical nenhum e não sabe trautear nada. Mas é alentejano. E um sedutor completo.”

Pode então dizer-se que havia antecedentes, até familiares, que levaram Tréfaut a rodar um filme sobre cante alentejano. “Nunca encarei isso como uma encomenda”, diz.

As filmagens arrancaram em 2012 e terminaram no final de 2013, com “um ou dois planos” em Janeiro deste ano. O filme não se centra num particular grupo ou aldeia alentejana. São nove os grupos de cante alentejano que figuram em Alentejo, Alentejo, e a diversidade é visível – grupos de homens, grupos de mulheres, grupos de crianças, grupos de jovens – mas o resultado é um retrato de família, comunitário. Este é um documentário que dispensa alguns pormenores mais burocráticos ou informativos (como a identificação dos intervenientes) para poder estar mais perto das pessoas.

Pode surpreender ouvir homens depois dos 60 anos a cantarem sobre a mãe ou mulheres da mesma idade a cantarem sobre amores de juventude. Mas não estão a cantar sobre uma experiência individual. Um alentejano não canta sozinho.

A ideia inicial era fazer um filme musical, “praticamente sem conversa”. Pode-se contar a história do século XX português através do cante alentejano. “Você tem letras sobre o rei D. Carlos, letras sobre a Pide, hinos ao Salazar, muitas coisas da Catarina Eufémia, coisas sobre a ponte Salazar, coisas sobre a Guerra Colonial, depois começa a haver muitas elegias políticas no período revolucionário – ‘como é grande o meu partido’ e ‘a seara de vermelho’”, conta Tréfaut. Os grupos de cante alentejano foram instrumentalizados pelo Estado Novo, que os transformou em bandeira do folclore português, controlando o cancioneiro e o traje. “Uma manipulação que não é menor acontece depois, durante o período revolucionário, em que os grupos são muito utilizados como bandeira política”, nota o realizador. Grândola Vila Morena, o hino da revolução, é um tributo ao cante alentejano. E o grande boom dos grupos femininos de cante alentejano dá-se após o 25 de Abril, “quando os direitos e o estatuto da mulher estão muito presentes em toda a estratégia política do Alentejo comunista”, diz Tréfaut.

E apesar de a grande maioria de grupos cantar temas tradicionais, cuja autoria e origem se perdeu, também há letras novas, que reflectem a actualidade, como o tema que se ouve no filme, Portugal Está Na Crise. Mesmo que sacrificando o lirismo figurado ou panteísta de outros tempos – não há nada de alegórico numa moda em que se canta:

“Neste nosso Portugal/Não sabemos que fazer/Tanta gente na miséria/Nem ganham para comer.”

Um filme-ensaio

Catarina Amador, 80 anos feitos no dia 15 de Agosto, abre a porta da sua casa térrea no Baleizão, terra de Catarina Eufémia, a ceifeira morta à queima-roupa por um GNR em 1954 quando reivindicava um aumento dos salários dos trabalhadores rurais. A televisão, ligada na TVI, é a única iluminação numa sala de estar escura, sem janelas, e daí passa-se para a cozinha, onde o marido de Catarina come sardinhas assadas com salada de tomate. “Se têm mandado dizer, não iam comer a outro lado. Tinha feito aqui uma coisinha boa, uma coisinha à minha maneira”, lamenta Catarina.

É impossível esquecer Catarina depois de ver Alentejo, Alentejo. Ela é a mulher que conta uma infância dickensiana, de pobreza e fome, enquanto cozinha uma açorda e faz plateias inteiras rirem disso. Ela viu o filme no final de Junho, quando Alentejo, Alentejo foi apresentado em Beja. Quando viu a sua imagem aparecer soltou um “Ai minha mãe, já cá estou!” “Quando eu digo que a gente não usava cueca, [as pessoas que estavam a assistir] mataram-se de festa! Hahahaha! Não podia ser mais bonito do que o que foi.”

O marido: “Não fui ver, não posso gabar.”

Com essa cena filmada na cozinha de Catarina, Tréfaut encontrou uma das linhas condutoras do documentário. Quando desistiu da ideia original de fazer um filme inteiramente musical, tentou fazer as pessoas falar, mas nada parecia funcionar. “Eram umas coisas que cheiravam sempre a conversa de telejornal. Mesmo quando eu tentava que uma pessoa conversasse a trabalhar, não funcionava.” As cenas filmadas nas cozinhas, com as pessoas a prepararem açorda, vieram resolver o problema, e, ao mesmo tempo fazem de Alentejo, Alentejo mais do que um documentário sobre cante alentejano, um filme-ensaio sobre o Alentejo.

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Catarina Amador (à esquerda) é a mulher que no filme conta uma infância dickensiana, de pobreza e fome, enquanto cozinha uma açorda e faz plateias inteiras rirem disso António Carrapato

Os temas cantados que se ouvem no filme vão ser reunidos em CD. Sérgio Tréfaut aproveita a visita ao Alentejo para pedir aos intérpretes que assinem uma autorização dando luz verde à inclusão do tema ou temas no CD, cujas receitas reverterão a favor dos grupos. Catarina canta duas modas que se ouvem no genérico final do filme, Ó Baleizão, Baleizão e Vai Colher a Silva. Sérgio lê a declaração e passa-a a Catarina. “Não sei assinar”, responde ela. Catarina canta no grupo local feminino Terras de Catarina – o nome é uma homenagem a Catarina Eufémia, que a ensaiadora, Etriges da Silva Rafael, chegou a conhecer (ela trabalhava no campo, juntamente com a irmã da ceifeira, quando se soube que Catarina Eufémia tinha morrido).

O grupo foi formado em 2002. O outro grupo local, só com homens, surgiu na mesma altura.

Sérgio: E antes não havia nenhum grupo de cante aqui em Baleizão?
Catarina: Não.
Sérgio: Só cantavam em convívio.
Catarina: Só. Nos bailes. A gente cantava nesses bailes.
Sérgio: No período da Reforma Agrária cantavam o tempo todo.
Catarina: Hum-hum.
Marido de Catarina: Cantavam no trabalho, contentes. Pensavam que era algum mar de rosas. Agora, no fim das contas, o Coelho arrebenta com tudo.
Catarina: Hahahaha.

Em Alentejo, Alentejo nunca se vê ninguém a cantar enquanto trabalha no campo porque “isso acabou realmente, sem retrocesso possível”. “As pessoas iam a pé, descalças, cantando, mondavam cantando, voltavam do trabalho cantando. Tudo isso morreu porque o trabalho manual morreu”, diz Sérgio Tréfaut. Mas o cante continua a estar presente e a marcar os ciclos da vida no Baixo Alentejo. O Grupo Coral e Etnográfico Camponeses de Pias canta frequentemente em casamentos a moda Olha a Noiva Se Vai Linda, quando a noiva entra na igreja. Nos funerais também há cante, embora Tréfaut nunca tenha filmado nenhum. Quando o mentor dos Camponeses de Pias, Manuel Coelho, morreu no ano passado, o grupo cantou o seu tema predilecto, Moda da Lavoura, no funeral. (“Foi difícil de cantar, digo-te já”, conta António Lebre, presidente e membro do grupo, à mesa de um restaurante em Pias).

A primeira metade de Alentejo, Alentejo – 50 minutos – parece uma espécie de último suspiro de uma tradição que vai desaparecer. Isso torna-se explícito numa cena em que um pequeno grupo de idosos, três homens e três mulheres, cantam sobre a morte (“Ó morte tirana / Morte / Eu de ti / Tenho ouvido queixas”) num cemitério. Esse momento foi rodado em Peroguarda, junto à campa de Michel Giacometti – o etnomusicólogo natural da Córsega a quem os portugueses tanto devem a recolha e preservação do seu património sonoro – embora isso não seja referido no filme, a não ser na letra miudinha dos créditos finais.

“Achei que era muito bonito fazer isso em honra de uma das pessoas que mais defendeu o cante alentejano e a sua história e que é amado pelos cantores alentejanos. Duas das pessoas que estão à volta da campa do Giacometti são os organizadores do funeral dele. Para eles era a coisa mais natural cantarem Solidão à volta da campa do Giacometti, que era a moda preferida dele”, explica Tréfaut.

“Agora, acho que estar a contar isso só seria compreensível para pouca gente. Deve ter poucos milhares de pessoas em Portugal que sabem quem foi o Michel Giacometti. A força da cena é a letra daquela moda cantada num cemitério. O que era uma coisa mais fácil de filmar do que esperar a ocasião de filmar um funeral em que houvesse cante. É mais difícil que isso aconteça e mais difícil que as pessoas digam, ‘Venha cá filmar.’”

Depois dessa cena, em que o filme parece cantar já o luto pelo cante, Alentejo, Alentejo vai encher-se de rostos jovens.

Renascimento, um fenómeno recente

Os Bubedanas surgiram de uma forma pouco séria em Dezembro de 2011. Amigos e colegas de liceu improvisaram um grupo de cante para participar num concurso de talentos de uma escola secundária de Beja. Ganharam. “E, de repente, houve um boom, fomos à televisão”, conta Buba (Bernardo) Espinho, 19 anos, num café em Beja, em frente da Escola Secundária Diogo de Gouveia, um edifício do Estado Novo. Um vídeo de Janeiro de 2013 com os Bubedanas a cantarem num programa da RTP tem mais de 43 mil visitas no YouTube. “Eu vi-os na net. E pensei: ‘Tenho o final do filme. Finalmente.’”, diz Tréfaut.

O cante alentejano está em pleno renascimento, com grupos de jovens a despontarem um pouco por todo o lado. É um fenómeno recente, e Buba está convencido de que os Bubedanas foram os responsáveis. “O cante estava esquecido. Arrisco dizer que somos os pioneiros da nova geração do cante.”

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Buba Espinho, fundador dos Bubedanas, um grupo de cante alentejano formado por jovens. “O cante estava esquecido. Arrisco dizer que somos os pioneiros da nova geração do cante.” António Carrapato

As gerações mais velhas não estavam habituadas a ver jovens cantar cante. Houve sempre casos pontuais de crianças que eram levadas para os grupos pelo pai ou pelo avô. Mas os Bubedanas, 14 adolescentes, surgiram por iniciativa própria, e sem que ninguém os obrigasse. Buba, um dos dois fundadores que ainda resistem no grupo, deixou o 11º ano por terminar para se dedicar exclusivamente à música e aos vários projectos de cante alentejano em que está envolvido – para além dos Bubedanas, também faz parte dos Adiafa (onde o pai, Luís Espinho, também canta), A Moda Mãe e Alentejo Cantado. Os Bubedanas é o único grupo coral, onde o cante é interpretado a cappella. Nos outros projectos, é acompanhado com instrumentos – percussão, viola campaniça.

Para além de tudo isto, Buba vai começar a ensaiar com um grupo coral feminino na Cabeça Gorda (entre Beja e Baleizão), com raparigas da mesma idade.

A agenda dos Bubedanas está cheia até Novembro. E o grupo quer lançar um CD. “Trouxemos esperança para o cante alentejano. Sentimos uma grande responsabilidade”, diz Buba.

É verdade que os Bubedanas parecem criar as suas próprias regras. Tréfaut explica que no cante alentejano o que é muitas vezes catalogado de polifonia, é, na verdade, uma bifonia. As formações mais comuns assentam em dois solistas – o “ponto”, que dá o mote de arranque, e o “alto”, que tem uma voz mais aguda – e o coro (que canta na mesma tonalidade que o “ponto”). Mas os Bubedanas têm uma maior variação de vozes dentro do grupo. E não têm prurido em sintetizar diferentes tradições na sua forma de cantar. Mas os Bubedanas também têm noção de que existe uma história. No Verão do ano passado, Buba Espinho passou muito tempo nas tabernas de Cuba, a aprender modas com os homens mais velhos. Em vez de recorrerem a um cancioneiro já fixado ou de se contentarem com as letras que abundam na Internet, os Bubedanas fazem o seu próprio trabalho de pesquisa, como investigadores. “Temos pensado em fazer várias recolhas. Se calhar não conhecemos nem um milésimo das modas que existem. E das maneiras que se cantam. De terra para terra, canta-se de maneira diferente”, diz Buba.

Sérgio Tréfaut sabe o que ele quer dizer. “Ao romper da bela aurora cantado pela Né Ladeiras com a Brigada Victor Jara, e cantado pelos Ceifeiros de Cuba são duas coisas totalmente diferentes.”

Buba confirma: “O canto da Cuba é uma viagem mais longa, com mais curvas. Fica lindo Ao romper da bela aurora começar num tom e acabar noutro, passando por vários sítios. Parece uma roleta russa, parece que não vai acabar.”

Sérgio: “Ele canta para mostrar para você como é.”

Buba obedece:

“Aoooooooo roooooom-peeeer de-aaaaaaa beeeeeee-la aaaaaaaau-rooooooooo-raaaaaaa/Sai oooooooo paaaaaas-toooooooor de-aaaaaaaaaa caaaaaaaaa-baaaaaaaa-naaaaaaa...”

Sérgio: “Desculpe, ele está a aldrabar: É metade da velocidade...”

Como é cantar isso sem ser à maneira de Cuba?

Buba canta:

Ao rom-per da-be-la auroooora/Sai o pas-tor da ca-ba-na...

Sérgio insiste: “Ele cantou a moda de Cuba a 200 à hora. É metade do que ele estava fazendo. Vai ao YouTube. Põe “‘Ao romper da bela aurora, Ceifeiros de Cuba’”.

Sérgio Tréfaut ficou “impressionado” com a “ausência de história” sobre o cante alentejano. As primeiras referências documentais a esta prática situam-se na viragem dos séculos XIX para XX. “Existe um grau de especulação enorme do ponto de vista histórico sobre se tem origens religiosas ou se tem origens árabes”, diz Tréfaut. Buba não vacila: “O nosso cante é árabe. Se puseres um marroquino a cantar é igual. O floreado todo.”

Espontaneidade

Uma das ameaças à sobrevivência do cante, na sua faceta mais genuína, tem sido o progressivo fecho das tabernas, lugares onde ele brotava espontaneamente. As tabernas foram substituídas por cafés e restaurantes e, aí, ouve-se dizer uma e outra vez, é mal visto que se cante, muito provavelmente por causa de uma velha associação entre o álcool e o cante. É por isso que a abertura de uma taberna em Pias na primeira sexta-feira de Setembro é um acontecimento.

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Uma das ameaças à sobrevivência do cante, na sua faceta mais genuína, tem sido o progressivo fecho das tabernas, lugares onde ele brotava espontaneamente António Carrapato

“Estava tudo a cair. Estivemos aqui a trabalhar três semanas no duro para abrir isto”, diz um dos membros do Grupo Coral e Etnográfico Camponeses de Pias. A taberna pertence ao grupo, acumulando a função dupla de sede própria e sítio para cantar.

Às 19h esta casa térrea branca, com faixa amarela, cheira a novo. Meia hora depois já cheira a fritos. Primeiro minis, depois vinho tinto servido fresco em copo de shot. “As pessoas gostam de mastigar o vinho enquanto comem petiscos”, diz António Lebre, 39 anos, encarregado-geral de uma empresa de pneus na Vidigueira, voz de comentador desportivo. Ele é um dos membros mais novos do grupo e o presidente do mesmo. O pai também faz parte do grupo. Os dois são conhecidos pela alcunha de “o Lebre”. António Lebre é também o ensaiador de um novo grupo de cante composto por jovens dos 15 aos 25, que ele próprio começou há dois meses.

“Os Mainantes aparecem numa noite de insónia minha. Saí de um ensaio dos Camponeses, chego a casa e olho para a foto que tirei do grupo e vejo uma grande parte do grupo envelhecido. E começo a pensar o que será o futuro deste grupo quando estas pessoas desaparecerem.” No dia seguinte, António começou a telefonar para os filhos dos amigos. Uma semana depois, no primeiro ensaio, apareceram sete rapazes. No segundo ensaio, 15. No terceiro, 19. No quarto, 24, a formação actual. No dia seguinte o grupo ia actuar na Festa do Avante.

“Estou orgulhoso de ter conseguido fazer estes rapazes cantar. O problema destes jovens é não haver emprego. Um dia vão-se embora”, diz António Lebre.

“Toda a gente tinha trabalho no nosso tempo”, diz um homem mais velho do grupo.

Os homens começam a cantar, de pé, junto ao balcão.

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O Grupo Coral e Etnográfico Camponeses de Pias já cantou com Caetano Veloso e Maria Bethânia no Pavilhão Atlântico António Carrapato

Quando um filho é pequenino/Ó meu lindo amor/Canta a mãe/O filho chora/Ó meu lindo amor/Ó meu lindo bem

Depois de se ver criado/Ó meu lindo amor/Deixa a mãe/E vai-se embora/Ó meu lindo amor/Ó meu lindo bem

O grupo de Pias, que já cantou com Caetano Veloso e Maria Bethânia no Pavilhão Atlântico, protagoniza uma das cenas centrais de Alentejo, Alentejo, logo no início do filme: uma ida a Lisboa, traje a rigor, para cantar no Mega-Picnic do Continente, em pleno Terreiro do Paço. O grupo começa a cantar, mas a voz-off de um locutor toma de assalto os altifalantes, abafando o cante.

“Queremos celebrar este dia da produção nacional... Este dia dedicado ao melhor que existe em Portugal. Nós queremos puxar o orgulho dos portugueses para lá para cima!

Está tudo pronto para o concerto de Tony Carreira?” Os cantores do grupo deixam o local cabisbaixos, humilhados.

O que se vê nessa cena é o triunfo de uma determinada representação do povo, criada, alimentada e reproduzida pela televisão, que contaminou todas as dimensões da cultura portuguesa.

Mas Alentejo, Alentejo é a vingança.

“O simples facto de mostrar que este universo [do cante alentejano] ou que estas pessoas têm valor é uma maneira de dizer: ‘Isto tem valor e a merda que vocês estão a ver na televisão não tem valor’. A Teresa Guilherme devia estar por detrás das grades. Quem diz a Teresa Guilherme, diz outros. Fazem crimes todos os dias, não contra a humanidade, mas contra a alma dos portugueses”, resume Sérgio Tréfaut.

“A língua portuguesa nesse filme, tanto as canções como a maneira de falar de cada um, é um acto político.”

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