Sua Majestade, o Romance

Ao adaptar ao cinema Os Maias, de Eça de Queirós, João Botelho seguiu o preceito da fidelidade ao texto, construindo assim uma obra que preserva uma tonalidade clássica em vários aspectos e faz com que ela responda, sem quebras, às respeitosas expectativas suscitadas por um livro do cânone.

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Os grandes telões de João Queirós acentuam o desejo de grande estilo inscrito no filme de João Botelho

Quando um romance ou qualquer texto literário de carácter narrativo são adaptados (tal palavra designa logo uma complexa operação), o dilema traição/fidelidade e a linguagem que lhe está associada emergem de maneira inevitável e espontânea.

E quando se trata de um clássico, de uma obra que está bem instalada no centro do cânone da literatura nacional e toda a gente com a escolaridade obrigatória leu ou consegue fazer que leu mesmo sem ter lido, como é o caso de Os Maias, tal dilema sobrepõe-se a tudo o resto e a questão primeira – que se pode mesmo tornar um critério totalitário de gosto e juízo crítico – é saber se houve traição ou fidelidade. Para resolver desde já tão magna questão, devemos anunciar que João Botelho foi fiel ao romance de Eça de Queirós no filme que estreou. O que significa “ser fiel”, neste caso, como em todos aqueles em que se adapta para o cinema uma obra literária, se a passagem se dá entre dois códigos irredutíveis (o do texto e o da imagem), dois sistemas heterogéneos? O senso comum responde com facilidade e imediatamente reconhece no filme de Botelho o pressuposto da fidelidade. Mas se começarmos a interrogar esta questão de maneira mais funda, as coisas complicam-se bastante.

O primeiro sinal de que o livro vai ser “respeitado” consiste no facto de o filme manter a figura do narrador, desempenhada pela voz off do barítono Jorge Vaz de Carvalho. A narração passa assim do texto à imagem, fazendo o leitor crer na ilusão de que a segunda é o prolongamento do primeiro. O romance, como sabemos, pertence ao realismo literário; o filme, por seu lado, está inundado de artifício (mencionemos o mais evidente: não há cenas de exteriores e as ruas, as casas e a paisagem urbana enquadrada, do interior, pelas janelas foram pintadas em grandes telões por João Queirós que, obviamente, não fez pinturas realistas) e exibe-o como um dos seus trunfos. E, no entanto, apesar desta discordância, para a grande maioria das pessoas o pressuposto da fidelidade mantém-se. É que ele incide sobretudo sobre a história, a intriga, e sobre as características do ambiente social e físico (por exemplo, se no filme a intriga se situasse na nossa época, ainda que o texto fosse recitado fielmente pelo narrador e as personagens mantivessem os mesmos diálogos do livro, o contrato de fidelidade era quebrado).

No filme de João Botelho, as intervenções do narrador impõem o reino de “sua majestade, o dizer”, expressão que Jean-Luc Godard usou uma vez, para se referir ao “complexo de inferioridade” (são ainda suas, estas palavras) que afecta o cinema, uma arte recente e sem história nem nobreza, face à arte literária. Poderíamos dizer que Os Maias filme trata Os Maias romance por “sua majestade”. E isso significa que a sua estética e a sua maneira de contar a história e desenvolver a intriga preservam a matriz literária; o objecto fílmico final, de certa maneira, não se autonomiza em relação ao texto inicial. O parti pris estético-narrativo deste filme consiste precisamente em fazer o jogo da fidelidade, no que isso significa corresponder a uma expectativa: tanto a do grande público como a de um público letrado que, quando se trata das grandes obras literárias, dificilmente adere a outra coisa que não seja a sua concepção bibliotecária da cultura. Para esse público, é isso que define o “cinema de qualidade”.

Digamos, sem ambiguidades: é a este “cinema de qualidade” que corresponde o filme de João Botelho, e certamente que essa qualidade o torna particularmente apto até a cumprir uma função didáctica e escolar. E fá-lo sem ingenuidade, com consciência e por deliberação. Não falta a este filme uma forte inteligência de si e uma grande competência. E, como é evidente, fornece um condensado bastante delicioso daquilo que faz ainda hoje a fortuna do livro: os diálogos, as grandes tiradas, os tiques enfáticos das personagens que representam tipos sociais, a ironia, as situações cómicas. Tudo está lá. Não saímos da sala sem uma impressão forte de João da Ega, de Dâmaso de Salcede, de Tomás de Alencar, de Afonso da Maia.

Se quisermos analisar e avaliar o filme segundo os seus próprios princípios, é uma obra acabada, perfeita, sem falhas, dotada de qualidades – diríamos “clássicas” – a que são permeáveis tanto um espectador culto como um espectador menos treinado. Mas se o analisarmos por aquilo que nele se constrói de especificamente cinematográfico, autónomo de sua majestade, o romance de Eça de Queirós – por aquilo que é a sua inteligência formal enquanto cinema e, por conseguinte, experiência de suspensão da estética e do pensamento discursivos – e já não pelo critério dominado pela questão de saber se o filme é ou não digno da obra literária que duplica, então as coisas mudam de figura.

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Rodagem do filme

Não há nada que se tenha prestado a tantos equívocos como a adaptação de um texto literário ao cinema. João Botelho sabe bem o que isso é, ele que já fez muitas adaptações, a penúltima das quais foi o Livro do Desassossego, cujo carácter fragmentário e reflexivo o colocam naquela categoria de livro impossível de ser transposto para o cinema. Aí, a questão da fidelidade e da traição não se colocavam da mesma maneira porque não podia haver uma expectativa com carácter quase normativo. Godard disse uma vez numa entrevista que não se lembrava de um grande romance que tenha dado um grande filme. Em contrapartida, lembrava-se – e todos nós, com uma mínima cultura cinematográfica, também – de romances medíocres, às vezes pertencentes à categoria da subliteratura, a partir dos quais se fizeram grandes filmes. Dessa magna questão da adaptação, e para percebermos melhor as legítimas questões que o filme de João Botelho levanta na sua vontade de transparência literária, lembremos o que escreveu uma vez André Bazin: “Não se trata de traduzir, tão fielmente e tão inteligentemente quanto possível, e menos ainda de se inspirar livremente, com um respeito amoroso, de modo a fazer um filme que duplica a obra, mas de construir sobre o romance, pelo cinema, uma obra num segundo nível”.

Mas o que, em última instância, define a “fidelidade” de Os Maias filme em relação a Os Maias livro é aquilo a que poderíamos chamar o desejo do “grande estilo”. O romance de Eça pertence ainda a essa totalidade própria do que foi chamado o “grande estilo”, a totalidade de que falou Lukács a propósito do romance como “moderna epopeia burguesa”. Ora, a eclipse do grande estilo dá-se com a dissolução desta e de todas as totalidades (que Nietzsche, de resto, já tinha anunciado: “A vida não reside já na totalidade, num todo orgânico e concluso”). Ora, mimar hoje o grande estilo (e a estetização pictórica dos telões acentua este aspecto) não é um gesto sem consequências: é um gesto de restauração, de restituição, em que se põe em jogo uma nova inocência estética. O filme de João Botelho não tem nada de inocente, mas as suas decisões formais mimam uma nova totalidade inocente, não apenas cinematográfica. Uma inocência de segundo grau, diríamos assim, um grande estilo consciente de que chega depois do desaparecimento do grande estilo e que não se importa de correr o risco da inocuidade. Do ponto de vista da dimensão política do filme, isto tem consequências: quando fala publicamente do seu filme, Botelho reivindica a capacidade de ele falar do Portugal de hoje, algo que o livro de Eça de Queirós, enquanto clássico, também faz. A questão, no entanto, é a de saber se essa actualidade política do filme não é sabotada pelas suas características formais. Em suma: a questão de saber como é que o filme assume o compromisso da sua forma sem alienar essa vontade de conteúdo político actual.

E isto torna quase obrigatório lembrar a oposição que Deleuze estabeleceu entre aquilo a que chamou “imagem-movimento” e “imagem-tempo”: a imagem-movimento é, na sua definição, a imagem concebida como elemento de um encadeamento natural com outras imagens numa lógica de conjunto análoga à do encadeamento finalizado das percepções e das acções. A imagem-tempo, por sua vez, é caracterizada por uma ruptura desta lógica da ligação narrativa ou significante entre as imagens. Podemos dizer que há uma modernidade cinematográfica que está inteiramente do lado desta temporalidade autónoma da imagem.

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Outro aspecto da rodagem com um telão do pintor

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