Febre de sábado à noite em N'Djamena

Um olhar "por dentro" sobre o Chade.

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A grande virtude de Grigris, um filme do Chade, é que não retrata a miséria com compaixão miserabilista

Mahamat-Saleh Haroun é um realizador natural do Chade que tem, praticamente sozinho, garantido a existência de um cinema chadiano, através da canalização de meios técnicos e financeiros de França (onde reside há décadas) para aquele país africano, de modo a constituir uma estrutura capaz de produzir filmes, localmente e com técnicos e actores locais. Haroun tem já uma mão cheia de longas-metragens, entre ficções e documentários, mas Grigris é o seu primeiro filme a estrear comercialmente em Portugal (embora deva ser notado que alguns dos seus outros títulos foram exibidos em festivais portugueses).

Grigris é também o nome do protagonista do filme, uma espécie de Travolta da febre de sábado à noite de N’Djamena, que apesar de uma perna doente e quase inútil é um dançarino exímio e sonha com uma vida onde a dança seria a sua profissão. Durante o dia trabalha na loja do velho padrasto, a tirar fotografias por encomenda, depois o padrasto adoece e, para lhe pagar as contas do hospital, Grigris mete-se com uma mafiazeca local, que se dedica ao contrabando de gasolina. É claro que tudo dá para o torto e sair de N’Djamena torna-se, no mais imediato dos sentidos, uma questão de vida ou de morte, para Grigris e para a sua amiga Mimi, uma miúda que faz uns biscates na prostituição enquanto aspira a uma carreira como modelo.É tudo uma grande miséria, claro, mas a virtude de um olhar “por dentro” é que não retrata a miséria com compaixão miserabilista. As coisas limitam-se a ser o que são, e por vezes, como nas muitas sequências na discoteca, a miséria é substituída pela euforia de qualquer discoteca
posh em Nova Iorque ou em Londres. É o ponto mais conseguido do filme, o modo como a música e a dança põem em perspectiva a descrição das ruas e do quotidiano de determinado bairro pobre de N’Djamena. Conseguido é também o registo narrativo de Haroun, muito standard, muito “euro-americano” na découpage, no ritmo, na mise-en-scène, até na emulação dos trâmites do “filme de máfia” quando essa passa a ser uma questão. Mas isto, claro, é uma face de dois gumes, que também limita o filme, como se ele fosse pensado para não maçar o gosto formatado das audiências ocidentais, bem longe do lirismo e da especificidade de alguém como Souleymane Cissé, para citar um cineasta da África francófona que até —há muitos anos — chegou ao circuito comercial. Independemente disto, Grigris tem virtudes que cheguem para justificar uma espreitadela: o par protagonista, ele de fácies peculiaríssimo pleno do “carisma dos feios”, ela uma rapariga bonita e escultural; e a sequência final, a mais singular em todo o filme, quando uma porção da África rural e “profunda” entra em confronto com a “modernidade” urbana e mafiosa, numa espécie de encruzilhada que justifica o tom, nada triunfal, em que tudo se conclui. 

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