Falha informática paralisou tribunais e advogados apresentam queixa-crime

No arranque da reforma dos tribunais, houve juízes indignados com a falta de condições. Os tribunais ficaram sem rede informática, apesar das garantias da ministra da Justiça, que desvalorizou a queixa apresentada pela Ordem dos Advogados. No total, fecharam 19 tribunais e outros 27 perderam valências

Fotogaleria
Enric Vives-Rubio
Fotogaleria
Fernando Veludo/NFactos
Fotogaleria
Fernando Veludo/NFactos

Um par de juízes observa com curiosidade um corredor, ladeado de gabinetes, como quem inspecciona uma casa para morar. Abeiram-se das janelas para verem melhor as vistas a partir deste segundo andar de contentores. Voltam a descer a escada, incrédulos com as assoalhadas que lhe couberam em sorte, 2,40m por 4m.

É ali, entre quatro paredes metálicas, que se vai fazer nos próximos meses a vida de 20 dos magistrados do Tribunal de Loures, enquanto decorrem as obras no Palácio da Justiça. “Não tem sentido trabalhar em contentores. Tira a dignidade toda às funções”, lamenta uma juíza. A reforma judiciária que lhes ditou esta morada arrancou há poucas horas e já fez estragos: além de ter fechado 19 tribunais e de ter roubado valências a muitos outros, bloqueou a plataforma informática do sistema judicial, o Citius. Após cinco dias de suspensão, continuou sem funcionar.

Para a bastonária dos advogados, este foi um dia catastrófico para a justiça portuguesa. “Não podia ter corrido pior”, sustenta Elina Fraga, que entregou na Procuradoria-Geral da República uma queixa-crime contra o Governo, por causa do fecho dos tribunais. Os advogados entendem que os membros do Governo “desprezaram o critério da proximidade do cidadão no acesso ao direito e à justiça”, violando assim direitos fundamentais. A bastonária diz que as piores consequências da reforma ainda vão chegar, e aponta o caso de uma acção executiva no Tribunal de Chaves que já foi agendada para Junho do ano que vem, “por o juiz não dispor de sala de audiências para o julgamento antes disso”.

Já a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, foi à SIC dizer que não existe ninguém que tenha ficado a mais de 59 quilómetros de um tribunal. Porém, uma reportagem do PÚBLICO espelhava segunda-feira o contrário, com o caso de uma mulher que terá de percorrer, em Outubro, 180 quilómetros numa viagem de quatro horas num autocarro até ao tribunal. Vai de Montalegre até Vila Real onde vai testemunhar num julgamento. Paula Teixeira da Cruz lamentou ainda, também como advogada que é, a queixa da bastonária: “Tenho pena de ver a minha Ordem fazer estes números mediáticos”.

A Procuradora-Geral da República deixou também um reparo à reforma: preferia que a nova organização judiciária tivesse arrancado ao mesmo tempo que o novo estatuto do Ministério Público, ainda por discutir e aprovar.

Em Loures, nos contentores do andar de baixo, dezenas de processos acabados de chegar amontoam-se. Vieram de outros tribunais da região desgraduados na hierarquia judicial. Uma advogada abeira-se da desarrumação feita de mesas, cadeiras e papelada: “Tenho um prazo a correr que termina hoje e outro que termina amanhã. E não saio daqui sem ver o processo”. Os funcionários desatam às gargalhadas. Aqui nem telefones há ainda, quanto mais acesso à plataforma informática dos tribunais, que teimou em não arrancar no país inteiro. “A ministra da Justiça já disse que voltava a funcionar ainda de manhã”, diz. Mas só ao final da tarde o sistema informático havia de voltar – e mesmo assim sem todas as funcionalidades.

Um problema na migração electrónica dos processos que foi necessário fazer por causa da reforma paralisou esta segunda-feira todos os tribunais de primeira instância, e as consequências só não foram mais acentuadas por a manhã ter sido gasta com as cerimónias de tomada de posse dos juízes. “A confusão é total: não há telefones, não há sistema informático, não há nada”, descrevia uma funcionária em Loures. O escasso público que apareceu de manhã foi mandado embora, por falta de condições de atendimento. “Estamos a dizer às pessoas para voltarem daqui a uns dias. Agora é impraticável”, explicava outro colega.

Uns metros adiante o mesmo casal de juízes tem nova surpresa: “Eh lá, mas o que é isto?” É uma das salas de audiência, mas que para espanto dos magistrados não tem a configuração certa: foi desenhada para julgamentos de processos-crime, quando estas são varas cíveis. Mas isso resolve-se, nem será o pior. “Não há aqui espaço para se sentar a testemunha”, observam, enquanto prosseguem a vistoria.

Mais a norte, no Palácio da Justiça do Porto, enquanto mais de 180 juízes tomavam posse com toda a solenidade e com convidados oficiais num imenso salão nobre, 190 funcionários judiciais debatiam-se com a impossibilidade de usarem o sistema informático.

“Estou aqui parada. Não sei o que podemos fazer. Não sei mesmo. Estamos de mãos atadas. Veja bem”, diz ao PÚBLICO uma funcionária sob anonimato. Nas várias unidades de processos, antes chamadas de secções, os funcionários estão de pé sem saberem o que fazer. Olham apenas para as inúmeras pilhas de processos. Vão amiúde ao computador perceber se o sistema informático já funciona. Sem sucesso.

Em algumas unidades, os funcionários foram reorganizando os processos. “Não podemos falar. Tentem falar com o administrador judicial. Estamos a ver os processos”. O administrador está na cerimónia. Estão a reorganizar os processos? “Não é bem reorganizar. Estamos a ver de que tratam. Vieram de vários sítios”, diz outro funcionário.

Reforma com défice de funcionários

No Palácio da Justiça do Porto – onde estava já o Tribunal da Relação do Porto e o Tribunal de Trabalho – estão agora a secção de execução e a secção cível. Trabalham agora 190 funcionários onde antes trabalhavam 40. O segundo piso do tribunal, enterrado ao nível de uma cave, onde a luz que que entra pelas poucas janelas não chega para iluminar a área, transformou-se num imenso armazém. Inúmeros armários, cadeiras, impressoras e material informático enchem o grande átrio. Ficou tudo onde foi descarregado.

Para o juiz presidente da Comarca do Porto, António Rodrigues da Cunha, nem tudo “poderia estar resolvido no primeiro dia” do novo mapa judiciário. Porém, durante o discurso de tomada de posse, decidiu deixar alguns avisos solenes. Alertou para “crónica falta de meios humanos e materiais” que se agravou, segundo disse. E avisou que se a situação não for invertida “estará inviabilizada qualquer pretensão de maior eficiência” e, por consequência, a própria reforma.

Para o magistrado “há coisas na Justiça portuguesa que inexplicavelmente continuam inalteradas”, tal como a crónica falta de funcionários judiciais. “É consensual a carência de funcionários. Faltam cerca de mil oficiais de justiça a nível nacional. É confrangedora a falta de salas de audiências em vários tribunais”, apontou durante a tomada de posse.

No edifício, lembrou o juiz, existem “dez salas de audiência” para 35 juízes. Antes da reforma estavam ali colocados 16.

Já na agora designada Instância Central – 1.ª Secção Criminal, os funcionários e juízes surgiam apoquentados nos corredores. “São da comunicação social? Então venham se faz favor ver esta pouca vergonha onde é suposto fazer justiça”. Uma juíza irritada convida o PÚBLICO a ver o tribunal. As paredes do segundo piso, onde antes existiam salas de audiência, foram abaixo. O vasto espaço aberto parece um estaleiro de obras cheio de pó delimitado por uma fita da polícia.

Naquele piso está aberta uma secção, mas a maioria dos funcionários não consegue aceder ao sistema informático. Os 25 funcionários judiciais, transferidos de Valongo e Gondomar para aquela instância no Porto, tomaram posse de manhã. Depois foram embora. “Sem sistema o que ficavam cá a fazer?”, pergunta uma funcionária.   

Sugerir correcção
Comentar