"Achava-o bom rapaz. Fiquei muito chocada"

Na rua onde o casal morava, em Marvila, a maior parte das pessoas mostra-se surpreendida com a detenção do pai e os indícios de maus tratos ao bebé de quatro meses, que morreu no domingo à noite.

Foto
Em Marvila, os vizinhos ficaram surpreendidos com as acusações de maus tratos aos pais do bebé que morreu queimado com água a ferver Enric Vives-Rubio

Não há relatos de desacatos com vizinhos. Na farmácia, o pai queria saber tudo sobre os medicamentos que tinha dar aos filhos. Quando a mais pequena nasceu, foi à mercearia de Esperança Rebelo mostrar-lhe a filha. Pelo menos de vista, quase toda a gente conhecia o pai da menina de quatro meses que morreu no domingo na sequência de queimaduras com água a ferver. Com 30 anos, não passava despercebido, andava quase sempre de chapéu. Já a mãe saía menos vezes das águas-furtadas onde o casal vivia, em Marvila, Lisboa.

Os dois foram detidos no domingo pela Polícia Judiciária (PJ), mas só a mãe foi posta nesta segunda-feira em liberdade. No domingo à noite, a filha mais pequena do casal morreu, na sequência de queimaduras com água a ferver. O INEM foi ao local, esteve uma hora em tentativas de reanimação, mas a criança já não respirava. O outro filho do casal, um menino de 18 meses, foi para já entregue a uma instituição de emergência. A PJ já confirmou que a criança que morreu tinha “lesões traumáticas em diversas partes do corpo" e que os elementos apurados “levam a crer que os maus tratos viessem a ser infligidos de forma reiterada há já algum tempo".

A maior parte das pessoas que vivem naquela rua, em Marvila, mostra-se surpreendida com a notícia. Alguns, como João Garrido, de 49 anos, viam, muito de vez em quando, o pai na mercearia de Esperança Rebelo a beber uma cerveja. Nunca presenciaram um excesso. Era “falador e bem-disposto”, mas não discutia com ninguém.

Na segunda-feira, não se falava de outra coisa na mercearia de Dona Esperança, como é conhecida. Todos tinham uma história, uma opinião, embora fossem de facto muito poucos os que conheciam bem o casal, que viveria ali há cerca de três anos. “Não tinham muita convivência com as pessoas a rua”, diz Jaime Silva, reformado de 65 anos. Ela não trabalharia e ele estaria empregado num restaurante em Lisboa, onde serviria às mesas.

“Ela nunca cá entrou. Ele veio cá umas duas ou três vezes, os bebés vinham sempre no carrinho, tapados, nunca os vi", conta Silvério Fernandes, 59 anos, dono de um dos cafés da rua. Achava graça ver passar o pai tanto de "fatinho e chapéu" como "de fato de treino”. “Parecia uma pessoa impecável", diz.

Na garagem por baixo do prédio, um dos funcionários recorda-se de conversar com o pai quando a criança nasceu. “Conhecia-o de bom dia e boa tarde, mas ele veio cá mostrar a menina quando ela nasceu. Mostrou-a com todo o afecto. Nunca imaginei isto, pelo contrário”, diz Jorge Vilela, de 37 anos. Na farmácia - onde o casal que não seria abastado nem andaria “bem de dinheiro” ia aviar as receitas -, os técnicos garantem que o pai era “muito cuidadoso com os medicamentos que levava para as crianças, queria saber as posologias todas”.

A dona da mercearia, Esperança Rebelo, 67 anos, conta que a mãe “era mais calma”, ele é que “gostava de falar”. Foi-lhe mostrar a menina à mercearia quando ela nasceu. “A mim surpreende-me. Não vou dizer que era um pai extremoso, extremoso, mas fazer aquilo por querer, não”, diz.

De vez em quando, Esperança Rebelo também falava com a mãe, que teria ainda mais uma filha, com cerca de seis anos, de um outro casamento e que viveria com o pai. Diz que ela saía pouco não só porque “não era de andar na casa de ninguém”, mas também porque o prédio não tem elevador: “Com os dois meninos pequeninos, via-se aflita”, justifica.

Ali, naquela mercearia alguns moradores garantem ter ouvido o pai dizer que a menina estava “bonita, bonita”, cada vez mais bonita. Outros asseguram que até a tratava por “princesa, a coisa mais querida do mundo”.

“Achava-o muito bom rapaz. Fiquei muito chocada. Não queria e não quero acreditar. Mas se não sabemos o que vai dentro de nós, como vamos adivinhar o que vai dentro dos outros?”, pergunta Luísa Reis, 73 anos. Esperança Rebelo acrescenta: “Falava com eles aqui na mercearia, mas nunca fui lá a casa.” Nem uma das vizinhas que, nos últimos tempos, garante ter ouvido algumas discussões entre o casal, sabe ao certo o que se passaria dentro daquelas águas-furtadas, em Marvila, Lisboa.

Sugerir correcção
Comentar