Era feriado e os miúdos de Gaza só queriam ser felizes

O relato de um dos jornalistas estrangeiros que foram autorizados a entrar em Gaza na segunda-feira. Histórias de dor e de morte entre o hospital, a morgue e o cemitério.

Fotogaleria
Um pai que perdeu um filho Finbarr O'Reilly/Reuters
Fotogaleria
Familiares carregam o corpo de uma menina de 5 anos SAID KHATIB/AFP
Fotogaleria
Criança de cinco anos retirada de escombros Ibraheem Abu Mustafa/Reuters
Fotogaleria
Famílias à porta de uma escola protegida pela ONU Finbarr O'Reilly/Reuters
Fotogaleria
Famílias no funeral de algumas crianças em Gaza Ibraheem Abu Mustafa/Reuters
Fotogaleria
Jovens choram mortos em Gaza SAID KHATIB/AFP

Dentro do hospital Shifa , na tumultuosa azáfama de salvar vidas, homens empurram uma maca com uma criança morta, embrulhada num pano branco. Uma rapariga de vestido vermelho, e o rosto coberto de sangue, deambula por entre os mortos e os quase mortos.

“Meu Deus, o que nos aconteceu”, diz um homem, a sua voz a sobrepor-se, por vezes, à das centenas de pessoas que enchem os corredores do hospital nesta segunda-feira. Provavelmente, estavam todos a fazer a mesma pergunta.

A tragédia começou às 4h30 da tarde com uma explosão numa estreita rua do bairro de Beach Camp. Os muçulmanos estavam a celebrar o feriado do Eid al-Fitr [que marca o fim do Ramadão, o mês sagrado do islão], e as crianças brincavam na rua — algumas em baloiços, outras junto às fachadas dos prédios ou ao lado dos carros estacionados. Os militantes do Hamas dizem que foi um ataque aéreo de Israel. Israel diz que foi um morteiro do Hamas que rebentou. Dez moradores foram mortos, pelo menos sete deles crianças.

Às cinco da tarde, Ahmed al-Helu não pensava em de quem era a culpa. Estava no hospital, chorando em frente do corpo despedaçado do pai, um amontoado de carne e ossos sem cabeça. Nem se apercebeu das crianças mortas e da rapariga de vestido vermelho que vagueava por ali.

Há uma semana, a casa da família no bairro Shijaiyah — onde as forças do Hamas e as tropas israelitas se enfrentarem — ficou debaixo de fogo. A avó de Helu — a mãe do pai — morreu, apanhada pelo fogo cruzado, e a família foi para Beach Camp. Esta guerra que dura há três semanas apanhou-os outra vez ali.

“Meu querido pai”, chora Helu, olhando para os pés pálidos do pai. “Vais ter com a tua mãe”.

Momentos depois, dois homens ajudam os enfermeiros a pôr o corpo do pai dentro de um saco branco. Um pequeno pedaço do corpo cai ao chão. Helu apanha-o, abre o saco e coloca-o cuidadosamente lá dentro.

Saleh Eleyan está sentado à porta da morgue do hospital, tem a cabeça enterrada nas palmas das mãos. Os corpos de dois dos seus filhos estão lá dentro. Um funcionário do hospital vem pedir-lhe que confirme os seus nomes, que estão escritos numa folha de papel. Depois, choroso mas em silêncio, Eleyan vê um rapaz que parece um dos seus filhos e agarra-se a ele com força. 

Uma ambulância passa devagar. Algumas pessoas assomam-se para verem se algum dos seus familiares vem lá dentro. Um funcionário do hospital traz uma maca da morgue, está vazia mas tem uma poça de sangue.

Dentro da morgue, os corpos de cinco crianças são colocados na câmara frigorífica metálica — duas na prateleira de cima, duas na do meio e uma na debaixo. Dezenas de homens em fúria denunciam o crime. “O martírio do Eid”, grita um. “Nunca mais teremos medo dos israelitas”, diz outro. “Que Alá se vingue disto”, gritam todos, alguns minutos depois.

Às 6h15 centenas de pessoas concentram-se no Beach Camp, na rua onde foi a explosão. Há uma pequena cratera no asfalto. Os edifícios e um Mitsubishi sedan estão cobertos de buracos do tamanho de bolas de ténis, provocados pelos estilhaços. Dois chinelos de criança estão numa poça de sangue.

Yayhya Al-Derby, de dez anos, conta que estava a brincar com os amigos no baloiço — uma estrutura portátil ali posta para os miúdos brincarem no feriado. Estava cansado e, por isso, tinha ido para casa. As outras crianças, dizem os moradores, estavam no baloiço e na rua quando o projéctil caiu. “Eram meus amigos”, diz Derby com as mãos a tremer.

Enquanto ele falava, uma mulher aproximou-se. Estava à procura de Osama, o filho da cunhada, que estava a brincar nos baloiços. Quando lhe perguntaram pelo apelido do rapaz, disse al-Helu. A mulher não sabia que o avô de Osama, e pai de Ahmed, estava morto. E ninguém teve coragem para lhe contar.

Às 6h48, os homens de Beach Camp levam o corpo de um rapaz de nove anos, Mansour Hajaj, para o cemitério mais próximo. O cemitério fica em frente de uma casa que foi reduzida a destroços por um bombardeamento israelita uns dias antes; uma parte do cemitério também foi destruída. 

Seguindo a tradição muçulmana, o corpo de Mansour foi lavado e envolvido em pano branco. O seu tio, um médico, está habituado a ver e a mexer em corpos. Mas chorava descontroladamente ao levar o sobrinho. O pai do rapaz, Rami, estava em pior estado e não foi capaz de ajudar a sepultar o filho. Só quando o tio colocou Mansour na sepultura gritou: “Quero vê-lo”. O tio ergueu o corpo de Mansour e abriu a mortalha, revelando o cabelo negro do rapaz. O pai ajoelhou-se e beijou a cabeça do filho.

“Que Alá se vingue disto”, gritaram os que estavam neste funeral e Mansour foi sepultado para descansar em paz.

Às 7h10 o grupo saiu do cemitério. “Ele só queria ser feliz no Eid”, disse o tio de Mansoul, “ele era só um miúdo”.

Exclusivo PÚBLICO/”The Washington Post”

Sugerir correcção
Comentar