O Iraque é um jardim e está a perder as suas flores, os cristãos

Em 2003, havia 1,4 milhões de cristãos no Iraque. Há um ano, eram 300 mil. Em Mossul, onde estavam quase desde o início da cristandade, sobram 20 famílias.

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Missa na Igreja de São José em Erbil, capital do Curdistão iraquiano, para onde fugiram muitos cristãs de Mossul SAFIN HAMED/AFP

Quantas famílias cristãs sobram em Mossul? Eram 20 na sexta-feira, entre as que decidiram afirmar-se convertidas ou pagar o imposto inventado pelos novos senhores, os combatentes do Estado Islâmico (antigo ISIS) que depois de assumirem o controlo da segunda maior cidade do Iraque, no início de Junho, declararam que ali começou a ser erguido um novo califado (um califa é o sucessor de Maomé, que governa a partir da lei islâmica, sharia, numa forma de administração que existiu até 1924).

Neste mundo inventado por homens que vestem de negro não há lugar para deslizes nem minorias – cristãos, yazidis, turcomanos, muçulmanos xiitas…

Os cristãos já enfrentam há muito risco de extinção no Iraque. O que aconteceu foi que de repente esse risco se tornou tão palpável que ninguém arrisca dizer quanto falta para o fim. “Eu sei quanto vocês sofrem, eu sei que foram despojados de tudo”, afirmou na oração do Angelus, há uma semana, o Papa. Francisco lembrou que falava para gente que viveu “lado a lado com os seus concidadãos desde o início da cristandade”.

O EI quer fazer implodir o Iraque e os cristãos em fuga de uma região onde vivem ininterruptamente há pelo menos 16 séculos são apenas uma parte desta nova realidade. Não estão sozinhos.

Há uma semana, enquanto Francisco rezava na Praça de São Pedro, no Vaticano, em Bagdad, os caldeus (rito oriental que responde a Roma e ao Papa) organizavam uma missa em solidariedade com Mossul. Eram poucos mas vieram mais – muçulmanos. Como os cristãos, vestiram t-shirts e ergueram cartazes onde se lia “Eu sou iraquiano, eu sou cristão”.

Dentro da Igreja de Mar Korkis, onde o patriarca Luis Sako, chefe da Igreja Católica dos Caldeus, começou a sua intervenção dizendo: “Eu sou cristão, sunita, xiita, yazidi e sou iraquiano”, cristãos e muçulmanos cantaram o hino do país.                              

A Síria e o Levante
O Iraque é tudo isto e quando tudo isto está ameaçado é o Iraque que corre risco de desaparecer. Óbvio para quem não é sectário, impossível de entender para os jihadistas que vieram da Síria para expandir o seu poder, que acreditam poder estender-se por todo o Levante (o termo começou a ser usado pelos franceses para designar o Mediterrâneo Oriental e corresponde à Síria histórica, que inclui o Iraque e o Líbano, mais partes do Sul da Turquia, Jordânia, Palestina, Israel e até um pedacinho de Chipre).

Depois de controlar zonas do Norte da Síria e de atacar no Líbano, o ISIS (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) entrou no Iraque em Dezembro, ocupando regiões de tribos que calharam viver no Iraque mas podiam estar na Síria. Só quando chegou a Mossul declarou um califado no Iraque e mudou de nome.

Mossul. Em 2003, viviam aqui pelo menos 35 mil cristãos. No Iraque eram 1,4 milhões. Dez anos depois da invasão norte-americana, segundo um relatório publicado o ano passado pela Fundação AIS (Ajuda à Igreja que Sofre), já só eram 300 mil no país. Em Mossul, não seriam mais de 3000 (a maioria tinha já saído, para o Curdistão iraquiano, a região mais segura do país, ou para o estrangeiro).

De Bagdad, desde 2003, muitos fugiram também, para onde puderam, uns a querer voltar assim que possível, outros tão assustados que só queriam juntar dinheiro e ir para bem longe sem olhar para trás.

Aconteceu o mesmo com todas as minorias religiosas que formam a diversidade que é o Iraque. “Nós amamos a nossa terra de uma forma muito especial, só não ficamos se não pudermos. Nós, os cristãos, somos as flores do jardim que é o Iraque”, dizia ao PÚBLICO em Dezembro o bispo auxiliar de Sako, Shlemon Warduni, numa passagem por Lisboa, mais preocupado então com a Síria (onde o ISIS já expulsava e matava cristãos, yazidis ou muçulmanos xiitas) do que com o seu Iraque.

“N” de nazareno                   
“Um professor muçulmano em Mossul foi assassinado por protestar contra a expulsão dos cristãos. Igrejas e mosteiros têm sido incendiados ou transformados em mesquitas”, denuncia num comunicado a AIS do Reino Unido. “Cristãos demasiado fracos para fugir têm sido forçados a converter-se ao islão. Os últimos 1500 fugiram de Mossul – depois de perderem tudo, deixados na estrada e obrigados a caminhar em sofrimento na escuridão.”

A ordem veio há uma semana: todos os cristãos das áreas controladas pelo EI tinham de sair, converter-se ou pagar um imposto. Nas suas casas começou a aparecer escrita a letra “N”, a primeira da palavra árabe para cristão (nazareno ou “nasrani”), sinal de que se trata de propriedade a confiscar. A mesma que os cristãos e muitos muçulmanos de Bagdad agora inscrevem na roupa – a mesma letra que, aos poucos, vai inundando as redes sociais em campanhas que incluem, por exemplo, usar o “N” como foto de perfil no Facebook.

Reunidos em Ankawa, um bairro de Erbil (capital do Curdistão iraquiano) que é na verdade uma espécie de vila cristã, os bispos do Iraque fizeram um apelo ao mundo na sexta-feira. “Queremos acções concretas e não apenas comunicados de imprensa”.

“Crime contra humanidade”
“Nós, os arcebispos de Mossul, provenientes de todas as suas denominações, reunidos em Ankawa, estamos chocados, em sofrimento e preocupados com o que aconteceu aos inocentes cristãos de Mossul por causa da sua religião”, afirmam.

Os bispos citam comunicados dos últimos dias: o secretário-geral da ONU e a Liga Árabe consideraram o que está a acontecer em Mossul “um crime contra a humanidade”. A Organização da Conferência Islâmica (que representa 57 países muçulmanos”) descreveu a fuga forçada dos cristãos de Mossul como “um crime intolerável” que “nada tem a ver com o islão e os seus princípios de tolerância e coexistência”.

O ISIS, agora EI, já provocou dois milhões de novos deslocados no Iraque. Na Síria fez muitos mais. Em desespero, primeiro foge-se para a aldeia vizinha, até que os homens de negro alcancem essa aldeia e matem e expulsem e imponham regras sem sentido.

No Iraque, os cristãos de Mossul (e muitos muçulmanos) fogem para onde podem. Na maioria, para o Curdistão iraquiano. O governo desta região autónoma já pediu ajuda. É que os novos refugiados juntam-se a todos os que já lá tinham chegado em fuga da Síria – e do resto do Iraque na última década.

Em 2010, o PÚBLICO visitou Ankawa, que todos os cristãos consideravam porto de abrigo. Na altura, Luis Sako era padre e não arcebispo dos caldeus e tinha-lhe cabido a Igreja de S. José. “Agradecemos a Deus, hamdulillah, foi uma grande misericórdia, especialmente para nós, cristãos, Ankawa é o ideal”. Para já, o Curdistão ainda é Iraque. Ninguém sabe por quanto tempo.

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