Câmara de Lisboa condenada a pagar dois milhões de euros por demolir prédio alheio

“Actos e omissões ilícitos” que deixaram 12 famílias sem casa em 1999 levaram agora à condenação da câmara em tribunal.

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Pedro Maia

A odisseia ainda não terminou. Já lá vão 15 anos desde que os proprietários do nº 13 da Rua Filipe da Mata, ao Rego, viram as suas casas, algumas com móveis e electrodomésticos dentro, serem arrasadas por ordem de uma vereadora da Câmara de Lisboa. No início deste mês, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa condenou o município a pagar-lhes uma indemnização que pode ultrapassar os dois milhões de euros. Mas a autarquia ainda pode recorrer – é essa a sua prática habitual –, o que terá como consequência o arrastamento do processo durante mais alguns anos.

Situado nas traseiras de um lote de terreno no qual estava prevista a construção de um bloco habitacional de cinco pisos acima do solo e cinco caves para estacionamento, o prédio da Filipe da Mata começou a acusar graves danos logo que ali se iniciou a escavação das caves, em meados de 1999. Alertada para a situação que se agravava de dia para dia, a Edirego, empresa proprietária do lote e responsável pelas obras, começou por fazer algumas reparações no prédio, mas nunca se dispôs a suspender as escavações. 

Repetidamente informados do que se estava a passar pelos proprietários das 12 fracções do edifício da Filipe da Mata, um prédio de seis pisos construído há 70 anos, os responsáveis da Câmara de Lisboa  também nada fizeram.

Perante o risco de desmoronamento do imóvel, e na sequência de vistorias e peritagens que não deixavam dúvidas sobre a responsabilidade das escavações da Edirego, a vereadora do Urbanismo no executivo presidido por João Soares, Margarida Magalhães, ordenou a sua demolição em Julho daquele ano. 

E de nada serviram as reuniões entre os condóminos do prédio da Filipe da Mata, a vereadora e o responsável da Edirego, Carlos Laureano – que era engenheiro da autarquia e partilhava o capital da empresa com a mulher, filha dos donos do vizinho restaurante Tia Matilde. Os lesados bem pediram à câmara que embargasse as escavações. Margarida Magalhães, porém, recusou-se, alegando que naquela fase o embargo seria ainda pior para a segurança do edifício.

Já em Setembro, a autarca determinou a posse administrativa do prédio da Filipe da Mata e a sua demolição coerciva – o que queria dizer que os seus donos teriam de suportar os respectivos encargos calculados em cerca de 100 mil euros.

Concluída a demolição, que implicou a perda do recheio de alguns dos apartamentos cujos ocupantes não o retiraram a tempo, o caso passou para a esfera da justiça. Durante algum tempo, uma parte das despesas com hotéis ou com a renda de novas habitações de alguns dos moradores ainda foi suportada pela Edirego, mas foi sol de pouca dura. Cada qual foi à sua vida e pagou a factura, até hoje.

Dois ou três anos depois, a Edirego acabou a obra, vendeu dezenas de apartamentos, fez uma ligação directa entre um dos pisos de estacionamento subterrâneo e o restaurante da família, e cessou a sua actividade.

Passados 12 anos, no final de 2012, os juízes da 7ª Vara Cível de Lisboa condenaram-na a pagar uma indemização de perto de 1,5 milhões de euros às vítimas, mas a empresa já não tinha com que pagar. Estava inactiva há anos e nas suas contas só havia dívidas. O tribunal, porém, entendeu que os bens pessoais do seus sócios não estavam em causa porque era a empresa, e não eles, que tinha de pagar a indemnização.

Paralelamente, corria há muitos anos no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa uma outra acção em que os condóminos da Filipe da Mata responsabilizavam o município pelo que sucedeu e pediam uma indemnização global na ordem dos dois milhões de euros.

Neste processo, cuja sentença foi proferida no passado dia 7, a câmara ainda alegou que os queixosos já tinham visto o direito à respectiva indemnização reconhecido com a condenação da Edirego no tribunal cível, pedindo mesmo que eles fossem condenados por litigância de má-fé.

Não foi esse o entendimento do tribunal administrativo. Atendendo a que os lesados nada tinham recebido, nem virão a receber, da Edirego, a juíza considerou que a acção tinha toda a razão de ser e que não havia da parte daqueles qualquer má-fé.

E como ficou provado que o município “comparticipou ou colaborou na produção do dano”, quer “no âmbito do licenciamento” da escavação, “quer no âmbito da fiscalização” da mesma, a condenação tornou-se inevitável.

No termos da sentença, “ficou demonstrado que o réu município praticou um conjunto de actos e omissões ilícitos, traduzido, em resumo, na aprovação do projecto e licenciamento das referidas escavações e contenção periférica sem que os mesmos estivessem instruídos com os elementos necessários à demonstração de que estava acautelada a zona circundante, a segurança do prédio dos autos” (...); “na violação do dever de fiscalização (...)”; e no “incumprimento do seu poder-dever de embargo”.

Além de chegar a esta conclusão, o tribunal rejeitou, até com base nos pareceres dos peritos, a argumentação da câmara de que os queixosos eram co-responsáveis pelo que sucedeu, uma vez que não teriam conservado devidamente o prédio de que eram proprietários e “não agiram com a diligência processual e procedimental devida, na medida em que não impugnaram judicialmente” a licença da escavação.

Por tudo isto, o município foi condenado a indemnizar os lesados, por danos patrimoniais, danos não patrimoniais e lucros cessantes, em montantes que nalguns casos terão de ser fixados posteriormente, mas que poderão atingir um valor global superior a dois milhões de euros.

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