Milhões de Festa: um mundo para descobrir em Barcelos

Até domingo, muito haverá para descobrir no Milhões de Festa. As bandas vêm da Galiza, do Níger, de Itália, do Brasil, da Tanzânia, de Portugal, dos EUA. Joaquim Durães, o organizador, explica a diversidade. Alex Figueira, dos Fumaça Preta, que serão, acreditamos, uma das revelações do festival, representa-a.

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No público está quem se alimenta de uma cultura pop sem fronteiras. Agita-se com rock’n’roll, dança batidas electrónicas ou saboreia psicadelismo turco Dato Daraselia

Um DJ que nos dá a volta à cabeça com psicadelismo turco (Baris K). Uns italianos a planar no espaço sideral com discos de kraut-rock e dos Silver Apples a rodar na aparelhagem da nave (The Lay Llamas). Um nigerino a hipnotizar-nos no seu balanço ondulante (Mdou Moctar). Coreanos a misturar instrumentos tradicionais com electricidade metaleira (Jambinai). Uma armada galega a dar bom nome ao pós-rock (Puma Punku, Guerrera). Uma banda brasileira que pega na tradição psicadélica de Mutantes e na actualidade de Tame Impala para criar canções mais leves que o ar (são os Boogarins e flutuamos graciosamente com eles). Outra banda, esta sedeada na Holanda e formada por um luso-venezuelano e um par de ingleses para dar corpo a um novo Tropicalismo (Fumaça Preta).

Não é um festival de músicas do mundo. É, corrige Joaquim Durães, um “festival de músicos do mundo”. Joaquim Durães, nome de guerra Fua, é, juntamente com Márcio Laranjeira, o programador do Milhões de Festa, festival barcelense que teve noite de arranque ontem, quinta-feira, e que se prolonga até domingo.

A partir de hoje, quando se abrem ao público todos os espaços em que se constrói o festival (o palco Taina, o do jardim onde se servem petiscos e da “varanda” sobre o rio Cávado; o palco Piscina, o da dança em fato-de-banho e cerveja na mão; o Milhões e o Vodafone FM, os nobres, nocturnos, no Parque Fluvial da cidade), teremos direito àquilo a que o Milhões nos habituou desde que, em 2010, se instalou em Barcelos. Um festival de descobertas, fiel à curiosidade do espírito melómano. Um festival cuja pequena dimensão (a média nos últimos anos tem sido de quatro mil espectadores por dia) lhe dá uma escala de verdadeira comunidade harmonizada com a cidade (e por isso os gigantes panados do Xispes, tasca histórica em Barcelinhos, na outra margem do Cávado, pertencem tanto ao imaginário do Milhões quanto os concertos).

Um festival que este ano assume de forma mais declarada a sua vontade de olhar mais longe que o habitual nos festivais com rock no centro das atenções. E por isso, a par dos já históricos Earthless, a banda americana de rock instrumental psicadélico (domingo, 23h20), ou dos High on Fire, stoner rockers de Oakland (sábado, 1h10), lado a lado com a folk gótica de Chelsea Wolfe (hoje, 21h40), com a brisa fresca dos Boogarins (hoje, 24h, e sábado, 24h, no Musicbox, em Lisboa) ou com os lisboetas Vicious Five (continuam o seu “funeral” hoje, às 1h50), os barcelenses Glockenwise (sábado, 0h10) ou os residentes Riding Pânico (a banda que actua em todos os Milhões chega sábado, às 17h), encontramos aquela diversidade de sons e origens que elencámos no primeiro parágrafo deste texto. Um privilégio para quem assiste: o mundo é grande e variado e estamos muito agradecidos à Inglaterra e aos Estados Unidos por terem desencadeado a cultura pop tal como a entendemos, mas não podemos continuar eternamente a olhar (só) para eles.

Melting-pot

Tal é uma inevitabilidade para quem inventou e programa o Milhões de Festa. “Para nós é desafiante criar este melting-pot, juntá-lo todo no caldeirão de Barcelos e dos rojões, e perceber que há aqui um caminho, que há ligações entre uma banda argentina e um DJ da Turquia”, diz Fua. Dias depois, desde Amesterdão, Alex Figueira, músico português nascido na Venezuela e habitante da cidade holandesa desde 2006, onde formou os Fumaça Preta, sacava de uma metáfora gastronómica para falar do mesmo que Fua: “Existe tanta maneira diferente de ouvir música e de fazer música, existem tantos instrumentos diferentes, que acho escandalosamente redutor fixarmo-nos no eixo anglo-saxónico, excluindo o resto, e ficarmos a ouvir os mesmos gajos com duas guitarras e uma bateria de há quarenta anos”. A metáfora chega agora: “É como estar a comer bacalhau com natas há quarenta anos, quando podias provar também peixe peruano com um molho brasileiro. É triste se não o fizeres por medo de experimentar”.

Não há neste discurso qualquer lógica de exclusão. O Milhões de Festa quer precisamente o contrário. Incluir, mostrar mais, provocar com o desconhecido. “Quando era mais novo ia a vários concertos em que não conhecia ninguém em cartaz e saía de lá com uma nova banda preferida para esse ano ou para a vida. O que queremos no Milhões é regressar a esse espírito”. Basicamente, os organizadores do Milhões de Festa, egoístas, querem programar aquilo que mais desejam ver. E querem, generosos, oferecer ao público o mesmo entusiasmo perante uma nova descoberta que sentiram quando viram “aquela” banda que tinham mesmo que trazer ao festival.

A programação é construída de forma muito moderna, navegando pela net em busca de novidades interessantes, e da forma mais clássica possível, numa rede de partilhas. Fua e Márcio viajam por festivais mundo fora e vão tomando notas do que mais os entusiasma no que vêem. Entretanto, vão recebendo sugestões dos seus “enviados especiais”: “Os Black Bombaim [banda de stoner-rock barcelense, figuras de destaque em edições anteriores do festival] estiveram agora um mês em digressão pela Europa e anotaram-nos uma série de recomendações”. O entusiasmo faz o resto. Fua anda de olhos postos, por exemplo, em Itália: “Nunca olhei para Itália como fonte de bandas que me entusiasmasse mas, de repente, há uma série delas a sair de lá. São como cogumelos. Apetecia-me ter um palco só com italianos”. Este ano, não haverá um palco só com italianos, mas haverá italianos capazes de encher um palco (The Lay Llamas, amanhã, 20h).

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Fumaça Preta, a banda que tocará no Milhões de Festa sexta à noite, às 0h50, representa na perfeição o espírito do festival

Entretanto, o trabalho da promotora e editora Lovers & Lollipops, co-fundada por Fua e organizadora do Milhões em parceria com a Câmara Municipal de Barcelos, vai permitindo estabelecer parcerias com estruturas que partilham visões musicais e formas de trabalho semelhante (escala do-it-yourself, digamos). Este ano, por exemplo, há colaborações com a emergente promotora londrina Baba Yaga’s Hut, com o festival espanhol de música independente MusicWeek ou com a editora galega Matapadre (“espero que seja a ignição para uma maior colaboração, porque às vezes esquecemo-nos que é só rodar a cabeça e temos essa grande Galiza aqui ao lado”).

Entretanto, o passa-palavra dos músicos que, ano após ano, têm passado por Barcelos vai também exercendo a sua influência. Exemplo 1: Quando receberam a proposta para tocar no Milhões de Festa, os londrinos Teeth Of The Sea (domingo, 2h40) aceitarem sem pestanejar: os Gnod, banda inglesa que passou pelo festival em 2012, disseram-lhes maravilhas e não houve hesitações. Exemplo 2: a referência em Portugal dos Earthless eram os Black Bombaim, companheiros de estrada; sabiam então o que era o festival, o que era a sua identidade, e sabiam que era dali que saíra uma banda que admiravam. Resultado? Não só virão a Barcelos como um dos seus membros, o guitarrista Isaiah Mitchell, fez questão de arranjar espaço para tocar com os Black Bombaim. Preparemo-nos então para um concerto sem rede que juntará Black Bombaim, Isaiah Mitchell, Shella, dos Riding Pânico, e o saxofonista Rodrigo Amado –estes concertos irrepetíveis com formações inesperadas são outra marca do festival (nesta edição teremos também a oportunidade de ver domingo, às 20h, Norberto Lobo e Filho da Mãe juntos em palco). Tudo isto deixa muito feliz e ansioso Alex Figueira, criador dos Fumaça Preta. A banda que tocará no Milhões de Festa esta noite, às 0h50, representa na perfeição o espírito do festival.

O grupo nasceu de um improviso. Alex Figueira, nascido na Venezuela e de origens madeirenses, mudou-se para Portugal aos 16 anos e por aqui viveu, tocando em várias bandas, entre elas os Contratempos, até 2006, ano em que se mudou para Amesterdão. Na cabeça, levava uma descoberta, o Tropicalismo. “Já gostava de música brasileira, mas com os Mutantes, com o álbum deles com o Gilberto Gil, com o primeiro do Caetano [Veloso], percebi que era possível juntar folclore local com centenas de anos a música estrangeira ultramoderna. A minha busca era misturar tudo aquilo de que gostava de uma forma que não tivesse sido feita muitas vezes”. Percebeu que era possível fazê-lo aprendendo com os tropicalistas.

Amesterdão, porém, não se revelou tão estimulante quanto imaginava. “A quantidade de oferta cultural, que é incrível, não tem correspondência nos músicos propriamente ditos”. Com isto Alex quer dizer que, apesar de uma “cena indie muito forte” e de uma cena electrónica “que rebenta com todas a outras”, foi-lhe difícil encontrar quem partilhasse a sua visão musical. “Sou muito obsessivo com o som que quero e os músicos com quem tocava não tinham paciência para me aturar”. A solução? “Fazer sozinho se tivesse que fazer sozinho e criar o meu próprio espaço para que ninguém me fodesse a cabeça”.

Criou um estúdio (o Barracão), criou uma editora (Music With Soul), começou a organizar noites regulares, as Vintage Voudou (garage-rock, soul, funk, tropicália). Uma das bandas para quem editou um single chama-se The Grits. Ingleses de Brighton, tornar-se-iam parte dos Fumaça Preta de forma inesperada.

Alex Figueira conheceu em Nova Iorque Joel Stones, brasileiro que mantinha naquela cidade a Tropicalia In Furs, loja especializada em música do Brasil, e que editara em 2010 a colectânea Brazilian Guitar Fuzz Bananas, que Alex adorava. Convidou-o a participar numa das sessões Vintage Voudou em Amesterdão. Os Fumaça Preta estavam prestes a nascer. A noite, descreve Alex, foi “uma banhada descomunal” (“nem tinham gira-discos para passar música”, conta). O dia seguinte foi tudo menos isso.

Alex, James, baixista dos Grits, e Joel Stones juntam-se no Barracão. Alex e James nunca tinham tocado juntos. Joel nunca se tinha aproximado de um microfone para cantar. Procuram pontos em comum e descobrem-no nos Sonics, a histórica banda de rock’n’roll de Seatlle. Atacam uma versão de The witch, que se transforma em A bruxa. Pouco depois, James e Joel corriam do estúdio para apanhar o avião de regresso a casa. Alex guardou o registo e, desde Inglaterra, James, guitarrista dos Grits, acrescentou uma linha de guitarra. “Percebemos que estava ali qualquer coisa”.

Seguiram-se nove dias de trabalho, espalhados por três sessões, com as vozes de Joel Stones e da paulista Kika Carvalho a darem discurso àquela música que é confluência de funk muito suado, garage-rock, salsa psicadélica, tropicalismo ou experiências sónicas em estúdio, tudo servido em canções sobre “pupilas dilatadas” ou “homens de lata” que precisam de “descargas mecânicas”. Nasciam então os Fumaça Preta que, depois dos singles A bruxa e Vou-me libertar, que têm sido cobertos de elogios entusiasmados pelo mundo online, se estrearão em disco a 15 de Setembro. “Somos muito nerds de estúdio e só começámos esta brincadeira para fazer em estúdio música que nos soasse o melhor possível. Só que os concertos tiveram muito boa recepção e percebemos que tínhamos mesmo uma banda”.

Foi quando já eram mesmo uma banda que Fua os descobriu. Fábio Costa, que podemos encontrar a animar noites Portugal fora (e além dele) enquanto DJ Quesadilla, passou-lhe um single. Fua encomendou um para si. “Quando chegou, o remetente era de Ermesinde. Fiquei intrigado: ‘Mas isto não é uma banda holandesa? O que se passa aqui?’. Descobrimos então que é a banda de um português emigrado que mantém o stock de discos cá, na casa de um familiar”.

Banda que agora chega a um festival em Barcelos. Chama-se Milhões de Festa e quer pôr-nos a descobrir tudo o que um mundo de músicos tem para oferecer.

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