Uma penetrante máquina de psicadelismo chamada Tame Impala

Em noite de regresso aos palcos portugueses dos Massive Attack, foi o rock psicadélico dos australianos Tame Impala que mais estremeceu o Super Bock Super Rock. Como se as guitarras dos anos 1960 ganhassem menos rugas do que a electrónica dos anos 1990.

Fotogaleria
Tame Impala Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Erlend Oye Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Metronomy Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Metronomy Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Cat Empire Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Tame Impala Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Massive Attack Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Massive Attack Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Massive Attack Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Massive Attack Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Massive Attack Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Massive Attack Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Massive Attack Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Panda Bear Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Panda Bear Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Disclosure Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Disclosure Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Disclosure Nuno Ferreira Santos

Talvez por sugestão de um festival em que, durante a tarde, não falta quem circule alegremente de pernas descobertas e toalhas de praia ao ombro, Erlend Oye faz uma pequena pausa no seu concerto para uma sessão informal de perguntas e respostas. O público pergunta, ele responde.

Alguém o questiona sobre quando trará a Portugal os Cock Motherfucker (banda por si produzida) e ele garante que mal surja um convite nesse sentido. Alguém inquire algo sobre o sexo feminino. E ele diz que se escusa a emitir opiniões, em modo consultório sentimental, sobre relações com mulheres portuguesas porque só conhece as italianas – vive na Sicília há dois anos e meio. Desaconselha, ainda assim, amores com moças dessas latitudes por, na sua opinião, falarem demasiado e nunca se perceber com que fim. E aproveita, mesmo que ninguém lhe pergunte, para deixar um outro conselho precioso: não percam os Tame Impala.

Erlend Oye (ex-Kings of Convenience) já teve melhores dias e hoje não é rapaz para entusiasmar por aí além uma multidão – nem é propriamente uma multidão que tem pela frente, nesta sua renovação de votos e promessa de fidelidade eterna à música acústica. Mas o ouvido não o traiu relativamente aos australianos. Passado apenas um ano sobre um belo concerto no Optimus Alive, foi como se durante este período os Tame Impala se tivessem metamorfoseado de encolhida banda timidamente crente no génio do líder-faz-tudo Kevin Parker em robusto conjunto rock pronto a ombrear com os clássicos do género. De então para cá, o som compactou-se e o reportório de Lonerism e Innerspeaker eivado de psicadelismo tornou-se ainda mais penetrante. Basta embalarmos assim que se inicia a poderosa máquina rítmica, calando uma adulteração alucinada de “Can You Feel the Love Tonight”, de Elton John para Rei Leão, no PA do festival.

A bateria que soa a loop circular perfeito como se fabricado em computador de Julien Barbagallo parece, curiosamente, perseguir o som obtido por Ringo Starr em “Tomorrow Never Knows”, quando, de facto, ao cair do pano do álbum Revolver, o baterista dos Beatles parecia adivinhar em 1966 o amanhã. Os Tame Impala, autores do grande concerto da noite de abertura da edição 2014 do Super Bock Super Rock, no Meco, soam de facto a cultores de um passado psicadélico enraizado nos anos 1960 e 1970 – com extensões chegadas aos Flaming Lips –, sem aparente esforço por soarem contemporâneos. E, no entanto, assim que os australianos inundam o recinto com “Solitude Is Bliss”, segundo tema da noite, já não restam dúvidas de que está aqui a mais estimulante proposta de um Super Rock longe das enchentes de anos anteriores (Prince, Arcade Fire, por exemplo).

A luta dos Massive Attack
Há, por isso, uma relação curiosa entre os concertos de Tame Impala e Massive Attack – que se seguem no palco principal como cabeça de cartaz. Enquanto os ingleses de Bristol surgiram no início dos anos 1990 com uma sonoridade que prometia um novo mundo, soturno, misterioso, sedutor, a reboque de uma electrónica em desaceleração capaz de invocar ambientes jazzísticos, soul ou hip-hop (o trip-hop, portanto); nos Tame Impala a música só tem ouvidos para o passado e quase acidentalmente resulta em algo novo. Daí que os Massive Attack, passados mais de 20 anos sobre o histórico Blue Lines, mesmo não tendo desbaratado as suas capacidades criativas, evidenciam um esforço saudável mas tremendo para que os seus temas não soem derrotados ou sequer aprisionados pelo tempo, contrariando o caminho da erosão. De Blue Lines (1991), o seu clássico absoluto, aliás, apenas recuperaram “Safe from Harm” e, já em encore, “Unfinished Symphony”.

É essa preocupação com a vitalidade do reportório em palco que parece justificar o facto de um concerto musicalmente competente – e nalguns momentos muito acima disso, como aconteceu em “Girl I Love You”, um monumento de tensão obsessiva superiormente encarnada por Horace Andy, ou nas participações da vocalista Martina Topley-Bird (antiga colaboradora de Tricky) –, se valer de um aparato visual que ajuda a criar ambiente onde, porventura, a música já não consiga chegar. Pelo ecrã, começam por passar nomes de medicamentos e quantidades a ingerir, passando depois pela vertiginosa sobredose de marcas a que todos estamos sujeitos, citações de George W. Bush sobre a intervenção americana no Iraque ou uma mixórdia de notícias que misturam e nivelam pela mesma bitola declarações de Edward Snowden referindo-se ao seu possível aprisionamento em Guantánamo, os tweets de Rihanna (publicados e apagados) a favor da libertação da Palestina ou uma misteriosa (e muito saudada) mensagem que dizia “Passos vendido por 16 euros”.  A máquina trituradora da informação da forma como a recebemos diariamente passando-nos à frente dos olhos, alternada com sequências de código binário e anunciando que a Internet não é o inimigo. Convidando, de certa forma, a que se tente ler para lá desse código e se crie um juízo próprio sobre o mundo, sem sermos apenas garganta para engolir informação e regurgitar em seguida.

De facto, em matéria de estratégias de sobrevivência nesta gente nascida no trip hop, os Massive Attack parecem mais apoiados nesta dimensão para-musical (capitalizando uma aura de consciência social e de inserção misteriosa na contemporaneidade) quando comparados com os outros pais do trip hop, os Portishead, que há três anos mostraram neste mesmo SBSR como a sua sonoridade não precisava descaracterizar-se para se acercar do kraut rock e se manter profundamente estimulante.

Sujar os fatinhos brancos
Após uma recepção de um inusitado histerismo há um ano no Optimus Alive, os Metronomy apresentaram perante uma euforia bem mais controlada no SBSR a sua pop dinâmica, canções que parecem estar numa coceira constante, com alusões recorrentes à boa prática do disco sound e do funk. Para não se ter dúvidas qual onde se coloca o altar desta banda, os dois sintetizados aparecem como que deificados em palco – primeiro com ar celestial, depois invadidos por corres garridas; só depois parece vir a voz de Joseph Mount, aqui e ali a surgir nos arrabaldes do registo de Will Butler, dos Arcade Fire. Só que nas canções dos Metronomy irrompem teclados dançantes e esvoaçantes a toda a hora, assemelham-se a um jogo lúdico sistemático, embora em muitas ocasiões – não é o caso de “Corinne” ou “Month of Sundays” – de forma morna. Quando acabam o concerto, e se olha os Metronomy vestidos impecavelmente, num branco imaculado, dá vontade de lhes recomendar que sujassem tudo um bocadinho.

Muito mais tarde, no palco EDP, Panda Bear mostrava-se empenhado em mostrar como um tipo em cima de um palanque tem o poder de guiar multidões. Só que, tal como Oye, também calhou não ter público em número que o lhe permitisse qualquer veleidade. Entabulando temas uns atrás dos outros, sem costuras visíveis, Noah Lennox ia soterrando as suas melodias vocais debaixo de camadas instrumentais, alinhadas com aqueles arpejos subaquáticos que conhecemos aos Animal Collective, num jogo em que mostrava e escondia as canções. Fascinante enquanto exercício musical, pouco convincente como espectáculo em contexto de festival.

O final de uma noite em que ouvimos ainda Frankie Chavez a passar bem por blues e folk em guitarra eléctrica, clássica e portuguesa; Jake Bugg em modo de rock’n’roll a tentar largar a meninice e uns Vintage Trouble que pareciam enxertar um devoto de James Brown numa banda de hard rock com resultados frequentemente  interessantes, o final, escrevíamos, ficou por conta dos Disclosure. O duo inglês que se tornou um dos fenómenos da música de dança no último ano, contando com colaboradores como Jessie Ware, AlunaGeorge ou London Grammar, tentou encenar a ideia de discoteca gigante ao ar livre, com um som viciante e colossal, mas cuja eficácia passava em grande parte pelo poderio arsenal rítmico vindo do palco. E novamente, vinha à memória, o tom grandioso e épico que algumas horas antes marcara também o final do concerto dos Tame Impala, com uma prodigiosa interpretação de “Apocalypse Dreams”, tema em que na mesma estrofe Kevin Parker canta “Nothing ever changes” e, um par de versos adiante, “Everything is changing”. É por aí que caminha o seu génio: não anuncia mudanças, mas, sem esforço, alcança-as na mesma.

Sugerir correcção
Comentar