Arrumar em: rock colombiano futurista

Na próxima quinta-feira, o Festival Músicas do Mundo, em Sines, dá ordem de descanso à sobriedade e garante a visita do psicadelismo tropical dos Meridian Brothers. Nem que aterrem óvnis o espanto deixará de estar no palco.

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Os Meridian Brothers: carrossel em constante aceleração LORENZA VARGAS
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Há desfiles de defuntos, meninas criadas para terem uma boa morte, ganadeiros futuristas que querem proteger os seus cervos de quem os queira envenenar, corcéis heróicos que salvam a população da fome e da corrupção, bebedeiras que correm mal devido ao whisky falsificado, chupasangres que ferram os dentes no povo, veneno e sangue a jorrarem generosamente, zombies que fazem investidas ao som de uma salsa tórrida e uma interminável galeria de personagens e situações carregadas de uma América Latina excessiva: uma fantasia de cores vivas esborratadas. A realidade, quando aparece aos tropeções, parece também produto da ingestão de algumas substâncias falsificadas. Assim são as canções dos colombianos Meridian Brothers que vamos ver no Festival Músicas do Mundo, em Sines, na próxima quinta-feira, dia 24. Ostentando nomes tão sugestivos quanto Baile úItimo – del preso que se va a la silla eléctrica por ofensa a la moral colombiana (é favor reter este título para ser recuperado daqui por umas linhas).

Resumindo: tudo nesta festa desgovernada, que parte da cabeça febril de Eblis Álvarez, soa a uma distopia tomada por um exagero que só espaçadamente vai cruzando o seu caminho com retratos de algo que concorra para a realidade. E faz sentido que assim seja neste espaço de um privilegiado psicadelismo tropical, de um surrealismo a ferver e deitar por fora. A história dos colombianos Meridian Brothers é a história de uma piada que se vai tornando progressivamente mais séria mas sem se transformar num objecto sisudo e rigoroso. Antes ainda de a transfronteiriça cumbia saltar inesperadamente dos festejos da populaça de acordeão colado ao peito e ir parar a pistas de dança disputadas por jovens latino-americanos com ouvidos educados pela música electrónica europeia (a sonhar com clubes de Londres e de Berlim), Eblis começara um projecto pouco sério em torno de outra música celebrada pelas classes mais baixas e baseada num acentuado primitivismo de construção musical. “Tenho um amigo chamado Javier Morales, um tipo louco”, conta Álvarez ao Ípsilon, “que estava muito ligado a estes estilos populares antes de eles passarem para o mainstream. Foi ele que nos pôs a tocar uma música foleira, de mau gosto e popular – como piada. Quando fizemos o nosso grupo de vallenato, era ainda uma piada e, aos poucos, fomos percebendo que no meio da piada havia algumas boas ideias.”

“As pessoas tinham – e continuam a ter – um grande preconceito em relação a esta música”, diz Eblis, lembrando os pressupostos originais do Ensamble Polifonico Vallenato – não vale a pena protestar, nesta realidade alternativa escreve-se mesmo “Ensamble” e não “Ensemble”. É precisamente esta relação entre a música e o gosto instituído, a ditadura do que é ou não aceitável, e a discussão sobre a partir de que momento um género musical popular e desprezado consegue o visto para pular a fronteira da recontextualização da “baixa cultura”, tornando-se então suficientemente estilizado para se considerar moderno e chique, que emerge em Baile último. Nesse tema magnífico, que avança a passo de caracol, Eblis canta a história de um pobre homem condenado à execução numa cadeira eléctrica por dançar demasiado reggaetón, género mal visto na Colômbia. Talvez por ter começado a traçar o caminho que desembocou nos Meridian Brothers a partir de uma postura musical que foi perdendo a ironia (até se tornar um autêntico espaço de experimentação em torno dos ritmos tradicionais latinos), Eblis não evita um pequeno esgar acusatório sempre que se refere ao hipsterismo (um histerismo hipster, perceba-se) em torno da cumbia digital.

Até porque à medida que o Ensamble Polifonico Vallenato foi dando lugar aos Meridian Brothers, Álvarez foi também sendo convidado a tomar parte nos Ondatrópica e nos Frente Cumbiero, formações em que a ligação à música tradicional era promotora de contacto com os seus autênticos intérpretes. Foi graças a essas duas formações, de facto, que os Meridian Brothers – trazendo também um psicadelismo pilhado aos Beatles e umas liberdades de composição que denunciam a escola clássica de que Eblis é originário – chegaram até à editora londrina Soundway, a mesma do projecto luso-angolano Batida. Em Londres para tocar com os Frente Cumbiero, Álvarez depositou a gravação do então último disco dos Meridian Brothers nas mãos certas. Passada uma semana, tinha no e-mail uma proposta para lançar com a Soundway Desesperanza (2012). Eblis, homem que passa o tempo a chocalhar-nos os sentidos com esta sua fórmula de psicadelismo tropical que expede setas até às imediações da chicha peruana via Nova Iorque dos Chicha Libre ou da champeta-Dick Dale inventada por Abelardo Carbonó, julgou-se ele próprio tomado por uma alucinação. Pouco depois, chegaria a compilação Devoción (Works 2005-2011) e a revista francesa Les Inrockuptibles não fazia por menos, pedindo atenção para o “génio” meio tresloucado que andava a fazer subir as temperaturas da redacção. Também a The Wire não evitou babar sobre o disco que recolhia algumas obscuras glórias passadas.

“Lutei uns oito anos para tentar que a minha música fosse editada, ninguém queria escrever um artigo e durante muito tempo ninguém ligou aos lançamentos”, confessa Álvarez, que chegou a ter de relegar a música para segundo plano e sobreviver como programador numa empresa de software de Bogotá. “Foi tudo muito lento. Tocávamos nalgumas festas em Bogotá para 20 ou 30 pessoas e de repente, depois de dar o CD ao Miles Cleret, o dono da Soundway, as coisas mudaram.”

No reino da Dinamarca

Estes longos anos de espera por algum reconhecimento começaram, no entanto, por alguma auto-censura. Até à edição de Meridian Brothers V – El Advenimiento del Castillo Mujer, em 2006, Eblis Álvarez não conseguia dar-se por satisfeito com as experiências de estúdio em torno de um projecto que nascera de um certo fascínio pela urbanidade rock argentina e progressivamente se tinha aventurado pelas festas de aldeia colombianas. “Os outros álbuns, na verdade, não são bem álbuns”, justifica-se. “São experiências pessoais – comecei pelo rock, pela electrónica e pela pop, depois experimentei integrar nueva canción e ritmos cubanos, depois fazer tudo acusticamente, depois cantar mais, mas pensava sempre que aquilo não era suficiente, que era capaz de fazer melhor. E essas experiências tenho-as guardadas em discos rígidos ou cassetes. Claro que costumava distribuí-las entre os meus amigos e alguns interessados, mas só a partir do V, que já foi prensado, é que a discografia começa a sério.”

Talvez não por acaso, tal apreensão da música colombiana pelo seu rock transviado aconteceria durante um período de sete anos em que Álvarez foi viver para a Dinamarca – uma saída, frisa, muito comum entre os estudantes universitários colombianos durante a década de 90. Ali tirou então um mestrado em Composição Clássica e outro em Música Electrónica. E a sua especialização levaria mesmo a que encontrasse subsistência durante meia dezena de anos em encomendas de composições para todo o tipo de ensembles, orquestras e coros no universo da música clássica, ao mesmo tempo que acompanhava ao piano aulas na Academia Real de Belas Artes, em Copenhaga, dedicadas à dança de Merce Cunningham. Ao regressar à Colômbia, no entanto, essa torneira da música escrita secou de imediato. “Aqui esse circuito está fechado nas universidades e eu não pertenço ao meio. Por outro lado, não quero compor música para a guardar numa gaveta. Detesto isso.”

Acabado de chegar, em 2008, Eblis Álvarez reecontrou-se com os amigos com quem tinha partilhado caminhos musicais anteriormente, mas espantou-se – quase ingenuamente – com o facto de cada um deles ter seguido percursos que ele não antecipara. “Para mim foi um choque, uma grande surpresa perceber quão desenvolvida estava então a cena alternativa colombiana”, recorda. Foi nessa altura que, sem trabalho como compositor de música erudita, ainda a ajustar-se a uma realidade musical da qual se desligara e numa fase de estranhamento, apareceu a empresa de software. “E como nada foi acontecendo, depois de ter feito à noite o segundo disco dos Meridian Brothers a ser publicado, estava resignado a ter de trabalhar como programador, sem quaisquer ambições na música porque esta não me dava trabalho.”

Em seguida vieram Los Pirañas, Frente Cumbiero, Ondatrópica, e a música começou a parecer-lhe novamente interessada na sua atenção exclusiva. Demitiu-se e “desprogramou-se” daquela vida. Ainda assim, a sua aposta não vai num sentido de crescimento constante. “Não me interessa atingir o mainstream”, garante. “O mainstream na Colômbia é uma coisa muito reles.” O recente Salvadora Robot, mais uma desbragada imersão num universo musical que é uma recusa constante da normalidade, soa a um carrossel em constante aceleração, perdido numa clareira no meio da selva onde o calor e a humidade patrocinam visões do que não está lá. A sorte é que as gravações de Eblis Álvarez – e, muito provavelmente, o concerto da próxima quinta-feira em Sines – provam que este universo, por muito inacreditável que soe, existe mesmo.

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