À noite, na terra

Uma vénia a uma cultura tradicional em vias de desaparecer, um pequeno requiem por um mundo pré-digital.

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Jim Jarmusch a fazer um “filme de vampiros”? A ideia pode parecer estranha, se não olharmos para além da mais recente, e muito teen, voga do “vampirismo” na cultura popular de grande circulação - e especialmente a série dos Twilight, que pormenor aqui pormenor ali até parece ser referenciada, e gentilmente desprezada, em Só os Amantes Sobrevivem. Mas se formos para além disso a estranheza dissipa-se, porque o recorte tradicional, romântico, da figura do vampiro, independentemente das suas dúzias de declinações cinematográficas, boas ou más (Só os Amantes Sobrevivem não é sequer um “filme de género”), apresenta de modo muito natural características típicas do que têm sido os protagonistas jarmuschianos no seus filmes dos últimos tempos. São marginais, condenados a uma existência clandestina dentro duma “bolsa cultural” muito própria e muito ritualizada; são noctívagos, habitam o “negativo” das vidas das pessoas comuns; e, sobretudo, são “antigos”, carregam com eles uma memória de séculos, uma memória que cada vez menos reconhece o mundo contemporâneo e é cada vez menos reconhecida por ele.

Só os Amantes Sobrevivem

não resulta assim num filme terrivelmente diferente do anterior filme de Jarmusch,

Os Limites do Controlo

, que olhava com severidade a massificação cultural e a diluição da memória no mundo dos nossos dias. Em mais do que um sentido, é disso que Jarmusch continua a falar, mas agora refugiado num nicho, propriamente “romântico” (os “amantes”, o “amor”: a mesma tábua de salvação que antes dele Lang ou Godard encontraram...), que dispensa a severidade e encontra algum gozo resignado na sua condição marginal, como se tudo se passasse entre membros dalguma sociedade secreta. E desse posto as personagens de Jarmusch observam, com um desencanto reconfortado pelas suas próprias memórias, um mundo a acabar e a ser substituído por outro. Uma das sequências mais bonitas é um passeio, nocturno evidentemente, pelos arrabaldes da Detroit decadente e arruinada, com clímax numa paragem num antigo cine-teatro: a câmara demora-se a filmar o tecto, rebuscado e imponente, enquanto as personagens mencionam a história do lugar e o facto de ele estar hoje transformado num parque de estacionamento, momento em que a câmara desce para mostrar os automóveis estacionados e nos deixar, subitamente, com o plano mais parecido com o final do Holy Motors de Carax que desde então foi feito (e é caso para dizer que aos carros só falta falarem...). O espírito de

Só os Amantes Sobrevivem

, seguramente próximo do do filme de Carax, fica plenamente iluminado nessa cena. Um não-reconhecimento, claro, mas feito com uma suavidade, uma “nonchalance” tão isenta de amargura que se torna espantosa por isso mesmo.

Entre a Tânger, por exemplo de Bowles e Burroughs, e a Detroit, por exemplo da Motown, em que tudo se passa, Só os Amantes Sobrevivem é uma vénia a uma cultura tradicional em vias de desaparecer, um pequeno requiem por um mundo “pré-digital”. As memórias dos escritores (o impagável Marlowe de John Hurt) rimam com as guitarras e os discos de vinil, vestígios e artefactos de uma civilização desaparecida, sinais da inspiração “sombria” trazida por estas criaturas da noite (no léxico jarmuschiano também é evidente que há uma rima entre os “vampiros” e os “artistas”). Em terra “zombificada”, que é como os vampiros chamam aos não-vampiros (os zombies), a estas criaturas resta a solidão, uma solidão com um peso de séculos. Através daí, e com centro no seu par protagonista (Tilda Swinton e Tom Hiddleston), Jarmusch recorta ainda uma outra história, a história de um vieux couple, “velho” literalmente de séculos, e de um amor que é preciso revigorar, reinventar. A delicada melancolia dessa história é incrível, como incrível é a nota de ironia que a derradeira cena lhe acrescenta, ao encontrar finalmente uma função para os “jovens”: eles têm o sangue, novo e fresco, que é preciso roubar para, enfim, viver mais uns séculos.

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