Fala com ela

A sinopse dava para imaginar um exercício de fetichismo maníaco, gelado, e pensar em gente como Buñuel ou Ferreri. Mas não foi esse o filme que Spike Jonze fez.

A sinopse era boa, muito boa: um homem apaixonado pela voz do sistema operativo do seu computador. Dava para imaginar um exercício de fetichismo maníaco, gelado, e pensar em gente como Buñuel, Ferreri e outros autores de tratados sobre uma masculinidade entrada em perda puramente onanista. A sinopse, e a ideia original de Spike Jonze, continua a ser boa, mas não foi esse o filme que ele fez, e Uma História de Amor (título português que involuntariamente ou não vai directo ao ponto do filme, muito mais do que o Her original) é como se, a partir do momento inicial promissor, Jonze tivesse tomado as piores opções e seguido pelos caminhos menos interessantes. Para começar, o sistema operativo não é bem um sistema operativo como os que conhecemos, não se limita a um repertório de meia-dúzia de frases maquinais ou às indicações das meninas do GPS. É um sistema operativo muito mais sofisticado (Uma História de Amor é um filme no “futuro”, um filme de “ficção científica”), com ilimitadas capacidades de aprendizagem e interacção. Tem uma espécie de alma, e descobre depois que também tem uma espécie de sentimentos. Uma personagem, portanto, uma personagem de “corpo inteiro” a que só falta o corpo - mas como tem a voz de Scarlett Johansson, que é, digamos assim, um “corpo” que toda a gente conhece, identifica e imagina, a “batota” de Jonze é dupla.


E é “batota” porque, na verdade, exactamente o mesmo filme podia ter sido feito com o pressuposto de uma história de amor “à distância”, ele (que é Joaquin Phoenix) num canto do mundo e ela noutro, em contacto através do Skype ou doutra geringonça qualquer. Mas aí, claro, perder-se-iam, ou não se revelariam da mesma maneira, as alusões ao magno tema do filme, “o papel da tecnologia na vida contemporânea”. Não que Jonze tenha algo de muito inovador a dizer ou a mostrar: apenas que a ilusão do contacto tomou o lugar do verdadeiro contacto (os planos das ruas, toda a gente sozinha, sem ver ninguém, concentrada nos auscultadores ou nos ecrans dos telefones), e que tudo funciona em falsidade e substituição, entre os jogos de realidade virtual e as cartas fictícias que são o ganha-pão do protagonista. O fundo “poético” do filme não é mais do que isto, um lamento pesaroso, sonâmbulo e sentimental pelo avanço da solidão na Humanidade. Já os vimos mais poderosos, mais ferozes, com menos ganga.

Dizer isto - que o filme é decepcionante, independentemente das suas premissas ou conclusões - não é dizer que seja para deitar fora. Joaquin Phoenix, por exemplo, é impecável, aguentando o filme, sempre em modo deprimido e reprimido, a falar com ecrãs e em diálogos “imateriais”. Há alguns flashes da imaginação delirante de Spike Jonze, e sobretudo do seu sentido de humor. Mas apenas uma única cena capaz de condensar e materializar os fantasmas que o filme timidamente convoca: aquela em que o “sistema operativo” encontra um corpo humano para o substituir, para uma espécie de bailado de acasalamento estranho, assombrado e “diferido”, onde o movimento e a coreografia lembram algumas coisas dos melhores telediscos de Spike Jonze.

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