Fora, Satanás

O “melhor filme” de David Cronenberg desde 1999, desde eXistenZ, é a sua presidência do júri de Cannes naquele ano: Palma de Ouro a Rosetta, de Jean-Pierre e Luc Dardenne, Grande Prémio do Júri a L''humanité, de Bruno Dumont, com os prémios para os intérpretes a serem distribuídos pelos dois filmes: Emmanuel Schotté (L''Humanité) como melhor actor, Séverine Caneele (L''Humanité) e Émilie Dequenne (Rosetta) como melhores actrizes, ex-aequo. Foi memorável, pela inteligência indomável de um palmarés que fez o que se devia sempre fazer, resistir aos compromissos e afirmar um pensamento e um gosto. Foi uma invasão proletária que tomou de assalto o Palácio dos Festivais e o “escândalo” desse palmarés - disse-se, por exemplo, que não fazia sentido premiar actores-que-não-eram-actores... - é já a História do festival. É com nostalgia que se recorda essa edição e os prémios a esses filmes/cineastas. Embora nem os Dardenne nem Dumont apresentassem aí as suas obras de estreia, Rosetta e L''Humanité têm uma energia de “primeira vez”. De tal forma foi/é assim, que os Dardenne têm passado o resto da sua obra a tentarem reproduzir esse momento, fazendo variações dele, chegando mesmo, com Le Gamin au vélo (2011), a uma declinação quase-pop, irremediavelmente ligeira; e que Dumont tem sempre dado a sensação de, filme a filme, estar a domesticar a selvajaria de L''Humanité em favor de algo reconhecível. Como se tivesse passado a fazer “cinema de género”, como escrita pronta-a-utilizar. O género, no seu caso, é “Robert Bresson”. O cinema de Dumont só ainda continua a intimidar pela rugosidade dos “intérpretes”, por uma opacidade que se recusa entregar de bandeja o que quer que seja ao espectador - ao menos isso, já que os Dardenne, como se sabe, não resistiram à suavidade do star system franco-belga.

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