História universal da escuridão

Magnífico, e inesgotável: vê-lo duas vezes é querer vê-lo uma terceira

Béla Tarr chega ao circuito comercial português in extremis: O Cavalo de Turim, anuncia o realizador húngaro, é o ponto final na sua obra. O nome de Tarr será familiar a muita gente, sobretudo pela influência que exerceu sobre outros (Gus van Sant é um exemplo evidente). A filmografia de Tarr, menos. Mas não é radicalmente desconhecida: houve uma integral na Cinemateca em 1997 (com Tarr cá), os filmes posteriores a esta data também foram vistos, na Cinemateca e noutros sítios, e um deles (O Homem de Londres, antecessor imediato de O Cavalo de Turim) conheceu edição portuguesa em DVD pela Atalanta. Ainda assim, é de crer que para a maior parte dos espectadores O Cavalo de Turim vá ser uma première absoluta. Bendita seja.


É o seu último filme, diz Tarr, e nada mais adequado a um “filme de fim” do que um “filme do fim”, um filme que descreve um esgotamento (da natureza, incluindo a humana), um encolhimento (do espaço), um apagamento (da luz). “Pai, que escuridão é esta?”, pergunta a rapariga no início do capítulo final. Pergunta lancinante, porque sendo feita, de facto, ao seu pai (a única outra personagem, humana pelo menos, que está presente no filme todo), ela soa como uma pergunta feita àquele outro Pai (dito o Nosso, que está no Céu), que já antes, numa das poucas cenas em que o diálogo é preponderante, fora implicado (“porque Ele toma parte em tudo”) no processo - seja ele qual for, de que natureza for - que as personagens vivem. Que miséria é esta a que nos condenas? Toda a obra de Tarr, num dos seus vários sentidos, relata este abandono dos homens a eles próprios, num mundo desolado, desertificado, insalubre. O Cavalo de Turim põe de facto uma pedra no assunto, a pedra definitiva (tumular...), vai às últimas consequências, estéticas e poéticas, de um movimento iniciado em Perdição e O Tango de Satanás. Depois dele, e através dele, nada sobra, a não ser uma espécie de... nada.

Estamos na província húngara, em época indeterminada que associamos ao final do século XIX a partir do preâmbulo narrado em off, que nos conta a história do silêncio de Nietzsche, chocado com os maus tratos infligidos a um cavalo numa rua de Turim. “Ninguém sabe o que aconteceu ao cavalo”, e começa a acção. A “acção”, de facto: em todos os seus fabulosos planos-sequência, O Cavalo de Turim mais não faz do que descrever acções, estendidas no tempo, numa unidade entre o movimento e a duração do movimento. Portanto, o esforço, a componente física da existência de todos os dias. No primeiro plano é um cavalo (o de Nietzsche? é irrelevante) que puxa uma carroça guiada pelo dono, e a câmara, sacudida pelo vento omnipresente, parece flutuar (este é o Tarr onde há mais steadycam), fazer uma anatomia do cavalo, os músculos a mexerem-se, o resfolegar, o cansaço. Não haverá muita ocasião de repetir este plano - que é ainda, à sua maneira, um plano de harmonia, um plano de um tempo em que tout va bien - sendo certo que o primeiro sinal de que as coisas começam a ir mal será justamente, mais tarde, a recusa do cavalo em mexer-se, em trabalhar. Não se repete este plano, repetem-se outras cenas - a repetição é uma figura fundamental em o Cavalo de Turim (bem reforçada pela música, enrolada e insistente, de Mihaly), crucial na descrição de uma rotina. As refeições, por exemplo, sempre as mesmas batatas cozidas com sal. As idas da rapariga ao poço, umas dezenas de metros em frente da casa, acompanhadas exaustivamente, desde o momento em que se levanta e se veste para o frio (muita roupa, muito tempo para a vestir) ao momento em que, de balde na mão, desafia o vento e a intempérie para percorrer o caminho até ao poço. E depois voltar com o balde cheio. Toda esta repetição é importante - e decide o “estruturalismo” do filme, curiosamente reminiscente do Jeanne Dielman de Chantal Akerman - porque é por ela que Tarr apanha a degradação da rotina e, consequentemente, da vida de todos os dias. As mesmas acções, de maneira cada vez mais difícil, cada vez mais imperfeita, até que se tornem impossíveis - o cavalo não anda, o poço seca, a lamparina não se aguenta acesa, as batatas não se podem cozinhar. The end.

Tarr não é um cinéfilo (no sentido exuberante do termo), mas é daqueles cineastas que, a cada enquadramento, permanece fiel aos realizadores que o formaram (Jancsó, Ozu, Fassbinder, Cassavetes, Godard, Pasolini, Ivan Passer - a julgar pela “carta branca” que a Cinemateca lhe deu em 1997). Também por isso, é um cineasta que vive à margem do tempo cronológico. Um filme como O Cavalo de Turim já não existe, quer dizer, podemos imaginá-lo a ter sido feito noutra década qualquer, é como um pequeno núcleo completamente impermeável. Até no tempo do mudo, que cinematograficamente será o espectro mais presente em O Cavalo de Turim - O Vento de Sjostrom, com certeza, mas na maneira de Tarr trabalhar a composição visual (aqueles planos de interior que, pela posição das janelas, se tornam também planos de exterior) e a sua expressividade, com um rigor maníaco que parece bater sempre assombrosamente certo, poucas vezes se sentiu uma “estética geral do mudo” a palpitar com esta potência (enfim, não falamos nem do maneirismo nem do folclore do mudo, isso é para os “Artistas” desta vida). Magnífico, e aparentemente inesgotável: vê-lo duas vezes é querer vê-lo uma terceira, tem lá dentro um mistério.

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