Alegoria da cave

Michael não é um “na mente de um pedófilo”, mas a sua dissecação por um cineasta-entomologista

Não são só os Fritzls ou as infelizes Nataschas Kampusch que é preciso evocar quando se quer encontrar um cordão que ligue à “vida real” o cinema da frieza e da crueldade que os austríacos, Michael Haneke à cabeça e depois os seus discípulos, como Ulrich Seidl ou este Markus Schleinzer, têm praticado e imposto como imagem de marca da sua cinematografia nacional. É que a Áustria foi o país que viu Adolf Hitler ser dado à luz, e imaginamos, não nos parece que mal, que contá-lo como um conterrâneo, “um de nós”, implique uma relação diferente, e mais desconfiada do que a norma, com a humanidade, tomada nos seus sentidos mais lato e mais próximo - por exemplo a humanidade do vizinho do lado, ou a do colega de trabalho. As histórias de Fritzl e de Kampusch vieram apenas recentrar essa desconfiança, encontrar-lhe um lugar preciso: a cave. E muito literalmente, porque ninguém precisa de metáforas quando se tem caves como as dos austríacos. De resto, nada disto é novidade: outro indivíduo nascido em Viena, Fritz Lang de seu nome, passou a vida a filmar caves e subterrâneos.


A cave é o ponto de partida e o ponto de chegada de Michael, estreia na realização de Markus Schleinzer, formado como director de casting para os filmes de Haneke (outro Michael, portanto, se não for excessiva maldade registar a coincidência, mesmo que a memória do Jackson, Michael por Michael, faça aparentemente maior e mais subliminar sentido).

Num exercício de curiosidade antropológica, tão mórbida como a curiosidade costuma ser, Schleinzer imaginou que o vizinho do lado, ou o colega de trabalho, tinha um segredo inconfessável na sua cave: um miúdo, mantido cativo numa relação pedófila, garantida à força e pela reclusão. E depois inventou uma história para esse segredo, não a história das suas razões, mas a história prática da sua manutenção no dia-a-dia, perante os olhares ameaçadores dos estranhos, e a história prática da mecânica daquela relação. Não é “na mente de um pedófilo” porque não se entra na psicologia, dela fica apenas o que se desprende pelos gestos e pelo físico (o rosto de Michael, sempre angustiado ma non troppo, assim como um tipo que não se lembrasse se fechou a torneira do gás antes de sair de casa), e porque na verdade o pedófilo interessa a Schleinzer como interessaria um insecto se ele fosse um entomologista (o rosto de Michael, mais uma vez: não é um insecto o que ele faz lembrar?).

Em abono de Michael como um exercício numa disciplina da zoologia, diga-se, há uma cena em que o protagonista e o miúdo vão ao jardim zoológico (e cruzam-se com outro adulto com um miúdo pela mão: provavelmente pai e filho, mas ah!, está definitivamente instalada a desconfiança), coisa que no fundo espelha a própria relação entre eles, como se a cave de Michael fosse o seu zoo privado. Num sadismo de algum requinte - se fosse mesmo um insecto tratar-se-ia de lhe ir cortando uma patita aqui, outra ali, e ver o que acontecia -, Schleinzer alimenta o filme criando dificuldades ao seu protagonista: a colega que chega inopinadamente, os amigos que o empurram para uma mulher de uma noite, a voz fora de campo do pai de outro miúdo que ele tentava juntar à colecção, e last but not the least as fúrias e revoltas, progressivamente mais violentas, do garoto.

Precipitarão o desenlace. Mas, transferindo o sadismo também para a relação do espectador com a personagem, deixa-nos a ansiar - como a descarga catártica que o filme foi tornando imperiosa - pelo momento em que o segredo de Michael seja descoberto pelos seus mais próximos. Queremos ver, queremos absolutamente ver, o choque na cara da mãe quando abrir a porta da cave do filho. Num derradeiro golpe de rins, Schleinzer nega-nos isso, lembrando que o sádico é ele e o espectador, de algum modo, também é o seu insecto. Cinematograficamente é a melhor solução; mas diabos o levem.

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